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David Wiswell

Eventos recentes dos EUA parecem trama de série (de humor) da Netflix

De embate entre Trump e FBI a caso Alex Jones, rumos absurdos do noticiário fazem qualquer um dar risada

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David Wiswell

Escritor e comediante americano

Para muitos de nós aqui nos Estados Unidos, as últimas semanas começaram a parecer o final de temporada insano e enervante de uma série excessivamente dramática da Netflix. Um no qual, na tentativa de manter os espectadores agarrados à beirada de suas poltronas, os personagens são postos em situações cada vez mais loucas, aparentemente inescapáveis, forjadas sob a ameaça de constrangimento, escândalo e ruína.

Esses fatos recentes tomaram rumos absurdos que fariam um telespectador real zombar: "Fala sério! Ninguém é tão idiota!". O detalhe é que os personagens reais envolvidos estão moldando o futuro do nosso país, e quem tem mais a perder são os espectadores —isto é, os cidadãos— dessa caricatura bizarra que chamamos de realidade.

Nosso episódio final começou semanas atrás, quando o inventor de teorias da conspiração e ex-assessor de Trump Steve Bannon pediu aos ouvintes de seu popular programa de rádio que pegassem em armas como "tropas de choque" para desmontar o governo "tijolo a tijolo".

O ex-presidente americano Donald Trump chega à Trump Tower, em Nova York, dias depois de agentes do FBI realizarem uma batida em sua casa de Mar-a-Lago, em Palm Beach - David 'Dee' Delgado - 9.ago.22/Reuters

A ironia do discurso é que ele faz parte da estratégia de Bannon para não ser responsabilizado por um possível envolvimento na invasão do Capitólio de janeiro passado. Ele foi acusado de desacato ao Congresso por desrespeitar intimações da comissão de inquérito da Câmara que apura o ataque.

Em essência, Bannon está ameaçando o Congresso com outro ataque semelhante ao de 6 de Janeiro caso eles não o deixem em paz em relação ao primeiro. Acho que, hoje, as tentativas de derrubar o governo são de certa forma vistas como sinal de desprezo. Esses malditos progressistas parecem não entender nada de patriotismo.

Depoimentos prestados no âmbito dessa comissão descreveram um Trump desequilibrado na data da invasão —atacando sua própria equipe de segurança por não permitir que ele se juntasse aos manifestantes, atirando o seu almoço na parede, dizendo que seu vice, Mike Pence, merecia ser enforcado pelos ativistas que pediam a morte dele e se recusando a desmobilizar a multidão até ser avisado de que seu próprio gabinete estava prestes a usar uma brecha legal para tirá-lo da Presidência.

Talvez o mais preocupante seja o fato de que Bannon é o apresentador de extrema direita mais sensato que o ex-presidente Trump supostamente ouve a ocupar as manchetes. Outro conspiracionista famoso, Alex Jones, está sendo processado pelos pais que perderam seus filhos no tiroteio na escola Sandy Hook, em Connecticut, por causa de suas alegações de que o tiroteio foi uma mentira perpetrada pelo governo e que os progenitores das vítimas são atores pagos.

A virada aconteceu quando o advogado de Jones acidentalmente enviou todo o histórico textual de seu cliente para o advogado dos pais que o estão processando por alegar que elas não existem. Aposto que ele desejou que elas realmente não existissem depois do que agora foi descoberto em suas mensagens de texto. Vamos chegar lá em instantes.

Curiosamente, Jones continua fazendo denúncias em seu programa de que eles são atores, mesmo depois de admitir repetidamente no tribunal que essas afirmações não são verdadeiras. (Nota lateral: ele se safa com essa retórica vil argumentando no tribunal que seu programa é puro entretenimento e que qualquer pessoa sensata não acreditaria nas coisas que ele diz. Esse é o único ponto em que eu e ele concordamos.)

A coisa se complicou quando o histórico de texto de Jones revelou que ele havia enviado fotos de sua genitália para Roger Stone, que trabalhou para todas as figuras políticas descaradamente corruptas e de má-fé, de Nixon a Trump. Stone é basicamente o Forrest Gump da política demente americana.

Tendo começado a trabalhar para Nixon na era do escândalo de Watergate, Stone descreve seu trabalho com ele como "tráfico nas artes obscuras". Basicamente um agente duplo político, ele trabalhava para o candidato democrata de dia e para Nixon à noite. O jovem oportunista aproveitou para pular no naufrágio de Nixon quando todos os outros pulavam do barco, mas antes de seu lendário impeachment e posterior renúncia. Foi uma ótima forma de um vigarista de vinte e poucos anos virar assessor do presidente, dando a Stone um trampolim para trabalhar no alto escalão do lado errado da política por décadas, numa trajetória que culminou na função de estrategista político de Trump.

Trump deu a Stone um indulto presidencial quando ele foi indiciado por mentir ao Congresso sobre o conhecimento que o próprio Trump tinha durante as eleições de 2016. Trump perdoa Stone por mentir para Trump. Tenho que admitir que é uma estratégia política fantástica.

Mas tergiverso; a principal questão política aqui é obviamente o "bilau" de Alex Jones e por que ele enviou aquela imagem para Stone. Infelizmente para os interessados nos pormenores da política, essas informações terão de esperar até a próxima temporada. (Embora o histórico de texto revelado no caso Parkland também tenha potencial para tornar a vida dos conspiradores ocultos e verdadeiros organizadores da invasão do Capitólio um inferno. Com os quais, dizem, Jones estava em contato. Teremos que esperar a próxima temporada para descobrir que outras revelações estão em seu telefone.)

Você vai ter que me desculpar se, depois das afirmações insanas de Jones de que Obama comia crianças no porão da Casa Branca para manter a juventude eterna e de que o governo dos EUA tinha um plano secreto e maligno de transformar os sapos da população em gays, agora eu duvide até mesmo da credibilidade do seu pênis. Uma palavra: Photoshop.

Tenho certeza de que os pais que ele alegou não existirem podem, do mesmo modo, acreditar que o penduricalho de Jones também é uma farsa. Eu gostaria de poder dizer que não vou perder a chance de fazer um trocadilho sobre sua "insu-ereção". Mas não posso, infelizmente.

Claro, a estrela da série de TV é o ex-presidente Trump, que teve sua casa invadida pelo FBI depois que veio à tona o fato de ele ter se recusado a devolver planos nucleares junto com dez ou 20 caixas de documentos confidenciais, muitos dos quais rotulados como ultrassecretos, por razões desconhecidas.

Estranhamente, isso ocorre poucos meses depois que os sauditas deram a seu genro e conselheiro-sênior, Jared Kushner, um cheque de US$ 2 bilhões para seu novo fundo de capital privado. Só se pode especular. E, é óbvio, eu especulo.

Trump, como de costume, respondeu ao ataque chorando, alegando que o FBI está agindo politicamente e que nenhum outro presidente "sofreu isso". Sem notar que nenhum outro presidente fez isso.

Além disso, Trump deu várias declarações contraditórias, dizendo, a princípio, que o FBI plantou as evidências encontradas em sua casa; depois, que o que eles encontraram não era ilegal; e, enfim, que ele tirou os documentos que eles acharam da categoria de "ultrassecretos" para que não fossem mais ilegais. Ironicamente, as declarações, que têm como objetivo eximi-lo de qualquer responsabilidade, foram postadas na rede que ele criou, Truth Social, verdade social.

Outra nota lateral: a Truth Social, que é vendida como uma plataforma "sem censura", recentemente provou ter "níveis sem precedentes" de censura, já que certas frases "progressistas" frequentemente usadas sobre saúde e aborto são automaticamente removidas da plataforma sem nem sequer uma revisão.

Trump também afirma que o FBI confiscou seu passaporte, o que ou significa que a organização acha que tem risco de ele fugir ou que o ex-presidente simplesmente o perdeu como um grande idiota. Só o tempo dirá com certeza.

As ações de Trump e a represália legal de agora despertaram seus bajuladores republicanos no Congresso, que precisam do ex-presidente e de seus poderes demagógicos sobre grande parcela dos eleitores para serem reeleitos. Eles abandonaram a retórica de "apoiar os azuis", a favor da polícia, que usaram para endossar a repressão aos protestos do Black Lives Matter em 2020, e começaram a tuitar sobre "acabar com o financiamento do FBI". Acho que nós só "apoiamos os azuis" quando os azuis atacam os pretos.

Isso sem nem falar nas conversas que recentemente vieram à tona nas audiências sobre a invasão do Capitólio, sobre Trump chamar seus generais de perdedores por não "serem mais como aqueles generais alemães da Segunda Guerra Mundial" quando eles se recusaram a enviar forças militares para atacar os manifestantes do Black Lives Matter, que participavam afinal de uma atividade protegida pela Constituição. Depois disso, pediu que os generais agissem: "Basta atirar na perna deles ou algo assim". (Acho que entramos no assunto. Desculpem-me.)

A propaganda anti-FBI acirrou os ânimos de muita gente da turma do "Make America Great Again", vide o homem que tentou se infiltrar na sede do FBI em Cincinnati com uma pistola de pregos dias depois das postagens de Trump sobre a batida, levando a um tiroteio e a mais tiros em um milharal a um quilômetro de distância que acabaram com sua vida. O FBI também foi submetido a uma litania constante de ameaças e assédio por telefone, emails e na internet e a protestos com presença de armas diante do escritório de Phoenix.

Tudo isso passa por cima do fato de que a Fox News, empresa de mídia de direita, que, assim como Jones, muitas vezes tem de se defender na Justiça com a tese de que "pessoas racionais não acreditam em nós", exibiu uma foto photoshopada do juiz que assinou o mandado para apreender os documentos na casa de Trump.

A imagem claramente adulterada mostra o rosto do juiz sobre traficante sexual mundialmente famoso Jeffrey Epstein ao lado de sua parceira no crime, recém-condenada, numa tentativa bizarra e rapidamente desmascarada de difamar o juiz.

Assim como a calúnia do FBI, os ataques de Trump, da Fox e do exército trumpista de pretensos legisladores a esse juiz provocaram ameaças de morte a ele e a sua família.

Como sempre, Trump aproveitou o ciclo de notícias da temporada para arrecadar fundos entre os seus apoiadores. "Nenhuma notícia é má notícia" é um ethos irônico de quem é tão famoso por atacar com fake news a imprensa por fake news. É o "A Origem" (aquele filme do Christopher Nolan) da lógica.

Sou um americano que espera que essa série de eventos com jeito apocalíptico seja só o final da temporada, e não o final da série. Talvez seja hora de reassistir ao programa desde o episódio-piloto com George Washington e a gangue maluca de rebeldes fumantes de cânhamo e bebedores de cerveja, para que possamos lembrar que talvez sempre tenha sido assim. E que fica mais fácil viver se você admitir que isso não é um drama. É uma comédia.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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