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Thiago Amparo

Na ONU, morno Bolsonaro sepulta a já gélida política externa de seu governo

Presidente faz discurso tão pequeno e previsível quanto ambição que projetou ao país

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Thiago Amparo

Professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP e colunista da Folha

Nova York

Em análises sobre discursos de chefes de governo nas Nações Unidas, chega a ser lugar-comum escrever que o presidente da República da vez usou o palco internacional para falar ao público interno, como se houvesse outro público com o qual um mandatário em campanha, como Jair Bolsonaro, deveria se preocupar mais do que seus eleitores —seja no palco de mármore verde em Nova York, seja no cercadinho de apoiadores ensaiados em Brasília.

Quem dera fosse este o problema principal da fala derradeira na Assembleia-Geral da ONU do atual mandato de Jair Bolsonaro.

Eis, na verdade, a principal agrura do discurso nas Nações Unidas: Bolsonaro conclui seu mandato projetando no cenário global um país tão insignificante e diminuto quanto sua capacidade de governá-lo internamente.

O presidente Jair Bolsonaro visto pelo telão ao discursar na Assembleia-Geral da ONU - Michael M. Santiago - 20.set.22/Getty Images/AFP

Saudou seus poucos aliados da direita global; repetiu os pontos de fala esperados sobre religião —esquecendo que ele mesmo abraça quem persegue cristãos, como a monarquia da Arábia Saudita; aproveitou o holofote para tentar ganhar o público que mais o rejeita, as brasileiras, citando inclusive a primeira dama Michelle, que o assistia da plateia; e, sem mencionar Lula, criticou a corrupção do alto do pódio de integridade que finge ocupar, apesar de inúmeras denúncias de corrupção em seu governo.

Na ONU, Bolsonaro sepultou a já gélida política externa: repetiu sem entusiasmo ideias antigas (defendeu a reforma do Conselho de Segurança já advogada pelo país há décadas), emulou o discurso de Lula a respeito da guerra na Europa (vociferou contra sanções econômicas à Rússia e a favor do que chamou de "diálogo" entre esta e a Ucrânia), fez um aceno aos militares brasileiros ao lembrar a participação do país em missões de paz (algo esperado) e repetiu algumas vezes a necessidade de respeito ao direito internacional (o que chega a ser tristemente risível para um presidente acusado de genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais internacionais).

Bolsonaro fez acenos aos poucos amigos que possui entre os presentes na plateia que o escutou: citou a inexistente "ideologia de gênero", um mantra de neoconservadores globalistas; mencionou países governados por seus pares populistas como Hungria e Polônia; disse defender a liberdade de expressão irrestrita (leia-se desinformação e discurso de ódio) e a priorização da liberdade religiosa na agenda de direitos humanos (leia-se cooptação do Estado por lideranças farisaicas), como se estas liberdades já não fizessem há décadas parte do panteão de direitos básicos nas próprias Nações Unidas.

Pode-se afirmar que a novidade deste discurso recaiu em dois aspectos. Primeiro, registre-se o fato de que Bolsonaro estava nesta terça (20) apagado, menos estridente do que em discursos anteriores, como um jogador brasileiro que cumpre tabela até o fim da partida de futebol na qual está perdendo de 7 a 1.

Isso surpreende porque ele não é afeito à moderação discursiva: para quem fez do funeral da rainha Elizabeth 2ª ato de campanha, o inferno é o limite —e porque, mesmo estagnado nas pesquisas, Bolsonaro ainda não é cachorro morto para que chute a si mesmo.

A segunda novidade foi, após discurso negacionista na ONU ano passado, ele ter se colocado como propulsor da vacinação no país, o que é mentira, e defensor do auxílio emergencial desde o início, mais uma falácia apenas para a ONU ver. Outra inverdade foi posar de defensor do meio ambiente, após anos de desmantelo de políticas na aérea.

Com a virada 180 graus de negacionista a pai da vacina e guardião do clima, Bolsonaro suaviza seu discurso, mas engana-se quem pensa que isso significa moderação: em Bolsonaro, mentir —mesmo com fala mansa— implica apenas estratégia de ataque, não retirada.

Se em falas anteriores nas Nações Unidas ficou claro que o país que Bolsonaro pinta o porco com batom não existe, o derradeiro discurso de seu mandato mostrou que também o presidente calmo projetado na ONU igualmente não existe: é o silêncio que se escuta antes da tempestade a qual toda a comunidade internacional deve estar bem atenta e que tem data marcada: 2 de outubro.

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