Fascismo usou humor agressivo para propagar ódio e deixou herança para direita radical

Estratégia para depreciar e calar opositores é repetida por líderes como Bolsonaro, Trump e Berlusconi

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Milão

Os atos de tirar sarro de adversários e difundir piadas machistas, sexistas e racistas fizeram parte da estratégia do regime fascista italiano para depreciar opositores —fossem políticos ou vozes dissonantes da sociedade— e para construir e manter consenso.

Líder fascista da Itália, Benito Mussolini, recebe em 1934 o líder nazista da Alemanha, Adolf Hitler, em Veneza - Photo12/Banco de Imagens Ann Ronan/via AFP

"É uma cumplicidade que leva a um sentimento de pertencimento, uma risada feita por e para homens, que os fazia sentirem-se superiores, viris, puros. Uma forma de reforçar a própria ilusão de identidade coesa", afirma à Folha Valentina Pisanty, professora de semiótica da Universidade de Bergamo.

Esse seria, inclusive, um dos valores de continuidade entre o fascismo instalado em 1922 e o discurso da direita radical contemporânea. "No momento em que um grupo se sente forte, do lado do poder, mira em outro que aparenta fraqueza e tira sarro dessa vítima. Um modo fácil de criar consenso é identificar e construir um inimigo."

Se antes circulava em revistas e jornais, atualmente esse pseudo-humor pode ser encontrado nas redes sociais, especialmente no formato de memes, e em espaços tradicionais de mídia, como programas televisivos. Não raro, proferido pelos próprios políticos.

Na Itália, o ex-premiê Silvio Berlusconi tem uma grande lista de comentários machistas. Nos EUA, o ex-presidente Donald Trump era celebrado por eleitores quando fazia piadas racistas. No Brasil, Jair Bolsonaro (PL), em seu primeiro discurso como presidente, disse que sua vitória representava a libertação do Brasil do "politicamente correto".

"Líderes da ultradireita se colocam como defensores da liberdade de expressão e da liberdade de risada, como desculpa para poderem exercitar o direito de insultar alguém", avalia Pisanty. "Com isso, autorizam seus apoiadores a esse tipo de risada, o que lhes dá a sensação de união e superioridade em relação a minorias que viram alvo de escárnio."

A estratégia tem precedente histórico no fascismo italiano. Especialmente nos anos 1920 e 1930, revistas como Bertoldo, Marc'Aurelio e La Difesa della Razza (a defesa da raça) publicaram séries de cartuns e vinhetas com imagens e frases de escárnio que tinham como personagens militantes da esquerda, negros, mulheres e judeus.

Em uma delas, um soldado italiano, em uma paisagem que remete à África, segura uma mulher negra amarrada e, diante de um guichê dos correios, diz: "Gostaria de enviar esta lembrança a um amigo meu".

Em outra, um homem de barba e com uma bandeira vermelha —caricatura de um esquerdista— é golpeado por um fascista, que lhe dá óleo de rícino, com efeitos laxativos, para beber. No desenho, sob a inscrição "efeitos da cura", a vítima é desenhada com fezes escorrendo pelas pernas, para em seguida empunhar uma bandeira tricolor —referência à Itália fascista.

Era um humor permitido e enraizado no senso comum moderado, o qual o fascismo passa a explorar com o objetivo de encontrar pontos de identificação com parte da população. "Naquela época, não era algo que provocava escândalo, principalmente os estereótipos africanos e judeus. O efeito de indignação que produz em nós esse pseudo-humorismo é hoje muito mais forte", diz

Pesquisadora de temas como humorismo, negacionismo, racismo e discurso político, Pisanty acaba de publicar o ensaio "A Risada Fascista: Quando se Ria para Restabelecer a Ordem", parte do livro recém-lançado "Fascismo e Storia d'Italia: A un secolo dalla Marcia su Roma", por ocasião do centenário da Marcha sobre Roma. O evento, ocorrido entre 28 e 31 de outubro de 1922, significou a chegada do ditador Benito Mussolini ao poder.

Em sua pesquisa, Pisanty analisou publicações consideradas independentes para identificar traços do humor de características fascistas em cartuns e vinhetas satíricas. O objetivo, como em outros ensaios do volume, foi encontrar pontos de continuidade entre o fascismo histórico e a ultradireita contemporânea.

Segundo a autora, a risada fascista pode ser definida como resultado de uma engrenagem de humor simples e rudimentar, diferentemente de outras formas de humorismo, que fazem uso de ironia, autorreconhecimento, reflexão, indiretas. "Modos mais sofisticados são aqueles em que há uma espécie de torção irônica que, no fim, não está mais claro de quem se está rindo, se da vítima de uma piada, por exemplo, ou de quem faz a piada", afirma.

No humorismo que circulava durante o fascismo, a risada era monocórdica, sem surpresas. "É possível distinguir a risada fascista no modo direto com que golpeia a vítima da piada com o objetivo de aniquilá-la e de reduzi-la à impotência", explica Pisanty. "Usa os estereótipos mais banais, como os sexistas e racistas, não para explorar contradições, mas para confirmá-las."

O regime de Mussolini, argumenta a autora, incentivava esse tipo de conteúdo de duas maneiras. Permitindo o funcionamento de publicações que aderiram a essa linha de humor em sátiras —enquanto não tolerava outros formatos de comicidade, contra si próprio— e agindo diretamente em contato com as redações, indicando campanhas. "Uma delas foi contra a mulher-crise, caricaturada como uma intelectual anoréxica, que não fazia parte da figura de mulher que queriam os fascistas."

Equivalente a um soco no nariz, como diz a especialista, a risada fascista está sempre ao lado do poder. Serve para delimitar, manter a ordem e desencorajar qualquer forma de desvio. "É uma risada que busca a cumplicidade de uns para marginalizar outros e humilhá-los ao ponto de não serem mais vistos."

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