O primeiro chefe de Estado a se encontrar com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após a vitória nas eleições foi o presidente da Argentina, Alberto Fernández, o que, para seu chanceler, Santiago Cafiero, foi resultado de "coerência e amizade". Em ambiente de pré-campanha, dado que os argentinos vão às urnas em 2023 para escolher seu próximo líder, o ministro afirma que a visita não teve propósitos eleitorais.
Após um período de esfriamento nas relações entre Argentina e Brasil sob Jair Bolsonaro (PL), o governo do país vizinho se mostra animado. "É injusto dizer que houve interrupção, as coisas caminharam de modo lento e reduzido, mas caminharam. Agora queremos acelerar e aprofundar o desenvolvimento bilateral", disse Cafiero à Folha, no Palácio San Martín, sede da chancelaria, em Buenos Aires.
Como foi decidida a viagem de Fernández ao Brasil? Estávamos acompanhando os resultados com muita atenção, pela envergadura da eleição para nós e para a região. Quando ambos se falaram por telefone, foi natural o desejo de que ele fosse dar um abraço nele, eles são amigos. Não há especulação eleitoral aí. Assim como Fernández havia se engajado na libertação de Lula, visitando-o na prisão, sem pretensão de utilizar isso politicamente, nunca houve especulação nessa relação. Há amizade e admiração.
Houve muita campanha anti-Argentina durante o atual governo brasileiro. Isso se refletiu na relação? Não, seria injusto dizer que a relação se interrompeu. Do ponto de vista das duas economias, do comércio, as coisas andaram normalmente, de modo pragmático. Numa velocidade mais lenta e em menor quantidade, mas não parou. Agora o que queremos é empreender uma nova marcha nessa relação e vincular ambas as economias de modo mais potente, com base na ciência e na tecnologia.
Como vê os blocos de integração regional? A Argentina está dando especial impulso à retomada da Celac (Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos). Sim, na Celac somos 33 países; o Brasil está ali, mas é o único a não ocupar seu espaço. Não foi embora formalmente, mas deixou de participar. É importante que tenha uma voz ativa, não só para a Argentina, mas para a região, assim como na Unasul [União de Nações Sul-Americanas]. Nossa prioridade é fortalecer o que já temos de mais profundo e duradouro na região, o Mercosul. Sei que ele é renegado por alguns, mas é preciso reconhecer que, mesmo em condições adversas e com diferenças políticas, continua funcionando. Obviamente, quando não há um entendimento mais profundo, ou uma melhor sintonização entre os governos, a velocidade é mais lenta.
Esperamos que, com a chegada de Lula, possamos avançar com o Mercosul. Estamos num modelo que entrou em crise em 2008, aprofundou-se com a pandemia e com a Guerra da Ucrânia. Queremos transformar a cadeia produtiva dos nossos países para incluir valor agregado aos nossos produtos, não podemos ficar só nas matérias-primas. O mundo está nos entregando essa oportunidade, e a afinidade política entre Brasil e Argentina nos dá a possibilidade de transitar nesse caminho juntos.
E as tentativas do Uruguai de fechar um tratado de livre comércio com a China, por fora do Mercosul? Até hoje não há nenhum documento preciso de estudo sobre um eventual tratado de livre comércio do Uruguai com a China, e o Mercosul tem uma agenda aberta. Ninguém irá bloquear a vontade do Uruguai. O que dizemos é que, se o fizer, que seja algo extensivo aos demais países-membros do bloco. Isso é essencial.
Qual sua visão sobre a Venezuela? Há uma sensação na região de que Nicolás Maduro se favorece com o novo panorama geopolítico, marcado agora pela eleição de Lula. Não é correto ficarmos criticando ou apontando a culpa de dirigentes. É preciso ter uma abordagem de tom humanitário. É certo que a Venezuela atravessa uma crise humanitária potente, por isso há tanta imigração. O que precisamos é gerar as condições para que os venezuelanos, se quiserem, possam voltar a seu país e se desenvolver.
A Argentina deixou de apoiar o líder opositor Juan Guaidó, como já fez a Colômbia e deve fazer o Brasil. O que mudou nesse panorama? A Argentina integrou, em seu governo anterior, o que era o Grupo de Lima, que foi se mostrando ineficiente para proporcionar soluções para os venezuelanos. Hoje, a Venezuela está transitando em um caminho de normalização. Há diferentes aspectos, é necessário avançar na defesa dos direitos humanos e na investigação de delitos contra os direitos humanos. A Venezuela precisa seguir as recomendações que todo o sistema internacional de direitos humanos lhe fez. E nossa visão é de que a Venezuela tem demonstrado fazer isso. Trata-se de um processo, não está resolvido, mas ele começou.
Existe na Argentina o risco de uma fatia do eleitorado não aceitar o resultado da eleição do ano que vem, como está ocorrendo no Brasil? Sem traçar paralelismos com Brasil e EUA, a trajetória da Argentina é a de um país que completará, no ano que vem, 40 anos de democracia com espaço para que todas as forças políticas que desejem expressar seu projeto de país o façam. Vivemos com muito temor o atentado contra Cristina Kirchner. Foi um reflexo violento dos que querem ameaçar nosso sistema de representação. Mas isso foi muito pontual, e trabalhamos para que não exista nenhum tipo de escalada dessa situação. Não vejo hoje na Argentina nenhuma força política que não se expresse dentro dos valores da democracia.
Raio-x | Santiago Cafiero, 43
Chanceler da Argentina, foi até o ano passado chefe do Gabinete de Ministros do governo Fernández, órgão responsável pelo diálogo entre Executivo e Legislativo. Foi também subsecretário de Indústria, Comércio e Mineração. É graduado em ciência política pela Universidade de Buenos Aires e mestre em políticas públicas pela Universidade Torcuato di Tella.
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