Noruega vive paranoia após caso de suposto espião russo que se passava por brasileiro

País alertou moradores para redobrarem atenção com drones, e denúncias e julgamentos se multiplicam

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Erika Solomon Henrik Pryser Libell
Tromsø (Noruega) | The New York Times

Pensando bem, vários detalhes sobre José Giammaria não faziam sentido.

O pesquisador convidado da Universidade de Tromsø, no Círculo Ártico norueguês, era ostensivamente brasileiro, mas não falava português. Além disso, não só custeou a própria viagem, uma raridade no meio acadêmico, como pretendia estendê-la. Nunca falava sobre o trabalho que desenvolvia, mas era sempre solícito, oferecendo-se até para redesenhar a página do Centro de Estudos pela Paz, onde trabalhava.

Vista de Tömso, na Noruega, com cidade dividida por um rio; oa fundo é visto um céu arroseado e um cume com neve
Tromsø, na Noruega, onde cidadãos procuraram a polícia em massa com informações sobre drones ou estrangeiros com suspeitas de espionagem - Serguei Ponomarev/The New York Times

Isso até 24 de outubro, quando policiais chegaram com um mandado de busca em seu escritório. Depois, anunciaram sua prisão, apontando-o como o espião russo Mikhail Mikushin. "A descoberta deixou todos no campus de orelha em pé; passei a ver espiões por toda parte", diz Marcela Douglas, diretora do centro.

Não só ela, como a Noruega e boa parte da Europa também. Com a Guerra da Ucrânia se arrastando, sem previsão de terminar, e Moscou cada vez mais isolada, as nações do continente estão cada vez mais desconfiadas de que o Kremlin, em desespero, esteja explorando a abertura da sociedade para aprofundar tentativas de espionagem, sabotagem e infiltração —talvez para mandar um recado, talvez para ver até onde pode chegar em caso de um conflito mais amplo com o Ocidente.

Além de Mikushin, dois outros russos foram detidos recentemente, sob a suspeita de serem "ilegais" —espiões que se inserem numa comunidade para espionagem ou recrutamento a longo prazo. Em junho, um estagiário do Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, também com passaporte brasileiro, foi preso em Haia acusado de espionar para Moscou. No fim de novembro, um casal foi pego em uma batida sueca.

Outros incidentes suspeitos surgiram em vários países: as autoridades alemãs desconfiam de que drones vistos sobrevoando bases militares onde treinam membros das forças ucranianas sejam da espionagem russa; um corte de cabos submarinos na França, embora não tivesse propósito malicioso, levantou suspeitas. E um ataque a redes de distribuição de combustível na Bélgica e na Alemanha, dias antes da invasão, também deixou muitos de orelha em pé.

Nem todos apontam incontestavelmente para o Kremlin, e em muitos lugares ficou difícil saber o que é reforço na vigilância, quais os verdadeiros motivos de preocupação e o que não passa de paranoia. Para a Rússia, as detenções recentes na Noruega, quase todas de cidadãos russos pilotando drones, é histeria.

Mas talvez ela tenha mais motivos de preocupação que a maioria. Agora que as sanções ocidentais praticamente estancaram a distribuição de combustível russo para o continente, a Noruega se tornou o principal fornecedor de petróleo e gás. Na sua costa ártica se encontram cabos submarinos essenciais para o funcionamento da internet que alimenta o centro financeiro de Londres e a transmissão de imagens de satélite do extremo norte, na fronteira de pouco menos de 200 quilômetros com a Rússia, que se encontra de frente para os EUA, do outro lado do Atlântico.

Esse papel vital se tornou um tanto mais vulnerável desde setembro, quando várias explosões destruíram a tubulação do gasoduto Nord Stream entre a Rússia e a Alemanha, incidente pelo qual Moscou e Washington culpam um ao outro. "Foi um chacoalhão que nos acordou para o fato de que a guerra não está sendo travada só na Ucrânia; também está afetando a todos nós, mesmo que seja difícil apontar os responsáveis", diz Tom Roseth, professor da Norwegian Defence University College.

Nos últimos anos, diversos espiões russos nos moldes mais convencionais foram identificados e expulsos, talvez fazendo com que a Rússia invista mais em agentes infiltrados, principalmente com o prolongamento do conflito na Ucrânia.

"O pico recente de casos deixa clara a dependência russa desse tipo de tática. Em Moscou, a pressão é grande, e sua rede europeia precisa mostrar resultados", diz Roseth. "Embora essas atividades sejam recorrentes desde sempre, atualmente os agentes estão assumindo riscos ainda maiores."

No caso da Noruega, o desconforto começou a aumentar desde que um drone de categoria militar foi visto sobre uma plataforma petrolífera do mar do Norte, em setembro. Depois disso, vários outros foram detectados sobre refinarias e uma central elétrica. Em outubro, o aeroporto de Bergen, próximo à maior base naval do país, ficou fechado por duas horas devido à observação de drones na região.

Um prédio com três andares com janelas iluminadas é visto em uma rua; calçadas são recobertas de neve
Campus da Universidade de Tromsø, onde espião russo que se passava por brasileiro foi detido - Serguei Ponomarev - 30.nov.22/The New York Times

Assim, os noruegueses começaram a questionar outros casos do início do ano, como o cabo submarino danificado em janeiro e o reservatório avariado nas proximidades de instalações militares, em Tromsø. E se não foram acidentes ou vandalismo, mas sabotagem dos russos?

"Ataques assim podem ser úteis, tanto quanto a vigilância sobre as torres de perfuração. Não sabemos exatamente quem são os responsáveis, mas agora eles sabem que sabemos que pode ter sido obra de alguém", diz o inspetor regional de polícia Ole Johan Skogmo.

Os cidadãos, obedientes, atenderam aos avisos de alerta, inundando centrais da polícia com chamadas sobre sobrevoos de drones ou comportamento suspeito de estrangeiros; há, porém, quem afirme que o excesso de zelo foi longe demais, em especial num campo obscuro quanto o da suspeita de espionagem.

Em uma tarde recente, na escuridão quase total do inverno ártico, o fórum de Tromsø foi palco de dois julgamentos de cidadãos russos, indiciados por pilotagem de drones. Nenhum foi acusado de espionagem, já que a atividade é de difícil comprovação, mas de violação das sanções europeias que proíbem russos de controlar aeronaves —graças à mudança na interpretação da legislação local.

Sete foram presos em outubro e quatro foram a julgamento; destes, dois foram condenados e forçados a cumprir penas que variam de dois a quatro meses, entre os quais Andrei Iakunin, filho de Vladimir Iakunin, aliado de longa data de Vladimir Putin, cujo caso foi acompanhado de perto pelo país.

Empresário com cidadania britânica e morando no Reino Unido, ele se distanciou da invasão russa, mas foi preso depois que seu iate, o Firebird, foi parado pelas autoridades, que queriam saber se tinha um drone. Andrei mostrou o equipamento usado para fazer imagens de si e de sua equipe esquiando e pescando. A promotoria pede quatro meses de prisão. "Não sou espião, mesmo tendo a coleção inteira de filmes do 007", brincou ele em entrevista depois do início do julgamento, no último dia 3.

Em outra sala, longe das câmeras, o engenheiro Aleksei Reznitchenko justificava-se, emocionado, em um julgamento muito mais discreto. O russo foi preso depois de registrar imagens de várias cercas e do estacionamento da torre de controle do aeroporto de Tromsø. "Foi mais intuição. Desconfiei e chamei a polícia porque achei muito estranho", diz Ivar Helsing Schrön, diretor de controle aéreo.

Homem sentado monitora telas de computadores; depois da janela de vidro, é visto o aeroporto de Trömso
Torre de controle de tráfego aéreo no aeroporto de Tromsø, onde monitoramento de drones cresceu após suspeitas de espionagem - Serguei Ponomarev - 30.nov.22/The New York Times

Reznitchenko foi pego com fotos de um helicóptero militar e do aeroporto de Kirkenes, ali próximo, mas justificou dizendo ser seu passatempo. Como nenhuma das imagens pode ser considerada ilegal, o russo foi então acusado de pilotar o drone. Tanto promotores como advogados de defesa admitem que esse tipo de caso se encaixa em um terreno legal obscuro que desafia os valores democráticos.

O caso Mikushin gerou uma briga entre analistas de segurança e acadêmicos: que rigidez deve ser aplicada ao monitoramento? É preciso restringir pesquisadores estrangeiros? A cooperação internacional?

Isso teria consequências desastrosas para campos importantes de pesquisa. Nos casos de uso de drones, tanto os advogados de Iakunin como os de outros réus alegam que punir os russos por sua nacionalidade é discriminação, com potencial de violação de direitos humanos. "Não se sabe até que ponto essa é a lei, mas se for apenas uma questão de semântica para encobrir o verdadeiro objetivo, então a legislação é problemática", explica John Christian Elden, chefe da assessoria jurídica de Iakunin.

O país parece não saber como lidar com a situação. Os juízes dos casos de Iakunin e Reznitchenko optaram pela absolvição, mas a promotoria apelou em ambos. O primeiro voltará ao tribunal de Tromsø em janeiro. Ola Larsen, advogada de Reznitchenko, disse que a Justiça vem agindo mais agressivamente, como se quisesse provar algo. "A política está pesando. Querem mandar um recado aos russos."

Gente como Schrön insiste que cautela nunca é demais. De olho nas notícias em sua torre, a poucos km do tribunal, ele confessa não se sentir culpado por mandar um homem a julgamento. "Sem dúvida, os espiões estão muito interessados no Ártico; é preciso ser muito ingênuo para acreditar no contrário."

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