Irlanda do Norte esbarra nas mesmas divisões após 25 anos do Acordo de Belfast

Tratado que encerrou sangrenta guerra civil faz aniversário em meio a crise política e institucional pós-brexit

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Milão

Há 25 anos, em 10 de abril de 1998, foi assinado o histórico acordo de paz que encerrou uma guerra civil com mais de 3.500 mortos na Irlanda do Norte. O momento é de celebração na capital, Belfast, mas, ao mesmo tempo, o aniversário alimenta o debate sobre pontos que precisam ser aperfeiçoados.

Um deles é o próprio funcionamento das instituições políticas no país. Há quase um ano, a Irlanda do Norte não tem governo executivo e assembleia legislativa em plena operação.

Imagem de Belfast, capital da Irlanda do Norte, durante a guerra civil que devastou o país - 29.Jun.1974/AFP

Apesar de ter vencido pela primeira vez as eleições regionais, o nacionalista Sinn Féin, que defende a reunificação com a República da Irlanda e é apoiado pela maioria católica, não conseguiu empossar a primeira-ministra, Michelle O'Neill.

Isso porque seu principal opositor, o Partido Unionista Democrático (DUP), pró-Reino Unido e identificado com os protestantes, é também seu aliado forçado. Pelas regras do acordo de paz, chamado de Acordo da Sexta-Feira Santa, as duas legendas são obrigadas a compartilhar o poder. O mais votado indica o primeiro-ministro, o segundo, o vice, e ambos têm o mesmo status. O DUP, no entanto, recusa-se a cumprir as formalidades para que o governo assuma e o Legislativo tenha um presidente.

Os unionistas exigem mudanças nas regras do brexit que afetam as fronteiras da Irlanda do Norte, consideradas uma ameaça ao elo com os britânicos. A revisão assinada em março pelo premiê Rishi Sunak e pela União Europeia, que simplifica barreiras alfandegárias, não foi suficiente para o DUP.

"Temos hoje uma situação meio antidemocrática na Irlanda do Norte. Quem está administrando no dia a dia são funcionários públicos que não foram eleitos", diz Peter McLoughlin, professor de política da Queen's University, em Belfast. Nesse cenário, os encarregados mantêm as estruturas operacionais, mas não têm poder para apresentar leis ou tomar decisões políticas.

Essa não é a primeira vez que as instituições ficam paralisadas por resistência de uma das partes, mas o momento é especialmente inconveniente devido à crise do custo de vida que afeta a Europa e às deficiências acumuladas no sistema de saúde, com as mais longas listas de espera do Reino Unido. Situações que exigem soluções que não estão sendo elaboradas devido à ausência de governo.

Apesar de o mecanismo de poder compartilhado, um dos pontos centrais do acordo de paz, não estar funcionando, McLoughlin ressalta a importância do que foi alcançado em 1998.

"Temos que pensar como foram os 25 anos antes do acordo. Tivemos aqui o conflito mais sério da Europa Ocidental, com muitas vidas perdidas, com praticamente todas as famílias afetadas na Irlanda do Norte. O acordo ajudou a resolver isso. Ainda temos problemas, ele não é perfeito, mas salvou vidas", afirma.

Os maiores responsáveis por bombardeios e tiroteios foram grupos paramilitares dos dois lados, como o IRA (Exército Republicano Irlandês).

O tratado, também chamado de Acordo de Belfast, foi obtido após anos de promessas de cessar-fogo e negociações, que envolveram uma frente multipartidária e representantes do Reino Unido e da República da Irlanda.

Os Estados Unidos atuaram como mediadores, e é por isso que o presidente Joe Biden tem na agenda uma viagem a Belfast e a Dublin nesta semana.

Com origens irlandesas, Biden fez parte do grupo de senadores que fez pressão para que Washington se esforçasse diplomaticamente para pôr fim ao conflito. Além dele, outras autoridades participam de celebrações na Irlanda do Norte, como o ex-presidente Bill Clinton e o próprio Sunak.

Diante do temor de possíveis ataques, a agência de inteligência britânica elevou o alerta de segurança para "severo".

Cerimônias pomposas à parte, é considerada pequena a chance de que a presença de convidados internacionais possa incentivar os líderes do DUP a destravar os trabalhos no Executivo e no Legislativo.

Jon Tonge, professor da Universidade de Liverpool, ressalta que os unionistas nunca defenderam efusivamente o acordo e associam Biden a seu apoio ao protocolo do brexit, motivo da atual paralisia. "Como acordo de paz, tem sido extraordinariamente bem-sucedido. Mas, como acordo político, que foi projetado para produzir um governo coeso através de divisões sectárias, não funcionou."

Segundo Tonge, um dos pontos que merece revisão é o direito de veto dos dois grupos na Assembleia. A ferramenta foi criada com a intenção de proteger uma comunidade de leis que pudessem privilegiar a outra.

Na prática, porém, já foi usado pelo DUP para barrar a união homoafetiva e a legalização do aborto –em 2019, ambos foram regulamentados por meio de outro instrumento. Para o professor, o direito ao veto poderia ser restringido, sem eliminá-lo totalmente.

"Já se passaram 25 anos. É hora de rever como o acordo funciona ou não funciona", diz. O movimento de reforma depende de iniciativas dos próprios partidos, o que hoje é improvável.

Uma rodada de conversas entre forças políticas e os governos britânico e irlandês poderia dar início ao processo, defendido também pela terceira força política, Aliança, que não é alinhada nem aos católicos nem aos protestantes.

Tanto Tonge quanto McLoughlin projetam que, baixada a poeira das festividades, o DUP pode se comprometer com a retomada dos trabalhos, pressionado também pelo eleitorado.

Até porque, diante do impasse prolongado, o governo britânico poderia exercer o controle das decisões locais na Irlanda do Norte. E, se tem algo que nacionalistas e unionistas concordam, é que essa é a pior das opções.

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