Mulheres arregaçaram as mangas em acordo de paz histórico na Irlanda do Norte

Coalizão exclusivamente feminina driblou polarização extrema para defender pautas como igualdade e direitos humanos

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Milão

Quando as negociações de paz na Irlanda do Norte avançaram em 1996, dois anos antes da assinatura do acordo que colocou fim ao conflito sangrento que havia marcado o país por 30 anos, um grupo chamou atenção no Fórum do Diálogo Político. Na lista dos 110 eleitos para participar das conversas multipartidárias –a grande maioria de partidos unionistas (pró-Reino Unido) e nacionalistas (pró-reunificação da Irlanda)–, estavam duas integrantes da Coalizão de Mulheres da Irlanda do Norte.

Tratava-se de uma legenda formada havia poucas semanas, que não se declarava a favor de britânicos nem de irlandeses, protestantes ou católicos. Sua principal intenção era garantir a inclusão feminina na mesa de tratativas.

Monica McWilliams (à esq.) participa de painel em Washington ao lado da ex-presidente irlandesa Mary Robinson
Monica McWilliams (à esq.) participa de painel em Washington ao lado da ex-presidente irlandesa Mary Robinson - Jonathan Ernst - 16.mar.23/Reuters

"Quando as conversas de paz foram anunciadas, arregaçamos as mangas e entramos na eleição. Queríamos colocar na mesa o partido das mulheres, vindas dos dois lados e com diferentes origens. Se você consegue criar consenso em um grupo tão diverso, você tem potencial para ser boa negociadora", conta à Folha Monica McWilliams, 68, cofundadora da coalizão e uma das eleitas para o fórum.

A criação do partido foi uma solução às pressas diante da resposta negativa para o pedido da inclusão de cotas obrigatórias femininas nas legendas tradicionais. "Criamos um partido todo feminino porque os outros eram todos masculinos. E se você quer estar em uma democracia e quer a transformação do conflito em paz, é preciso ter mulheres na mesa."

McWilliams foi membro da Assembleia Legislativa até 2003 e atuou em organizações ligadas a direitos humanos. É professora emérita da Ulster University, em Belfast, especialista em resoluções de conflitos e autora do livro "Stand Up, Speak Out" (Levante-se e fale). Nele, McWilliams conta que o processo foi envolto em ataques misóginos e sexistas. "Eram verbais e, às vezes, físicos. Éramos ameaçadas e tivemos a janela do escritório quebrada. Criamos um mural com o 'insulto da semana'."

"O processo de paz da Irlanda do Norte foi bastante incomum, porque as mulheres eram especialmente evidentes nas conversas oficiais, graças à criação da coalizão", afirma Maria-Adriana Deiana, codiretora do Centro de Gênero em Política da Queen's University, em Belfast. "Elas foram capazes de construir o partido sobre a longa história de ativismo feminino dentro das comunidades, como resposta a efeitos econômicos e cotidianos. E levaram isso para a mesa de negociações, o que foi muito importante."

As principais posições do grupo de mulheres nas negociações envolveram questões de igualdade, direitos humanos e inclusão. Um dos pontos fundamentais, segundo especialistas, foi a recusa de entrar na discussão se a Irlanda do Norte deveria se unificar à República da Irlanda ou permanecer no Reino Unido. Foi uma decisão que permitiu a elas alcançar uma ampla variedade de pessoas.

Apesar da defesa de que escolas e bairros não fossem mais segregados entre protestantes e católicos, o que acabou sendo incluído nos termos do acordo de paz, a situação pouco avançou 25 anos depois. Cerca de 95% das crianças ainda frequentam escolas com majoritariamente somente um dos grupos.

"Na implementação do acordo, não havia mecanismos específicos para colocar alguns tópicos em prática. Infelizmente, o potencial transformativo não se realizou em sua completude. Isso também é um legado –pensar em como podemos fazer melhor", conclui Deiana.

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