Russa acusada de crimes de guerra levou milhares de crianças ucranianas à Rússia

Maria Lvova-Belova levou trabalho com infância a círculos de poder e hoje é alvo de mandado de prisão do Tribunal de Haia

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Valerie Hopkins
Moscou | The New York Times

As crianças reunidas num acampamento de férias nos arredores de Moscou foram saudadas por uma artista usando "kokoshnik", uma tiara tradicional, que as recebeu com o gesto russo de acolhida. Mas elas não eram da Rússia. Eram crianças ucranianas levadas de áreas da Ucrânia ocupadas pela Rússia.

"Recebemos vocês assim porque vocês agora são nossas", disse Maria Lvova-Belova, a comissária russa de direitos da infância, no evento.

a foto dá destaque à Lvova-Belova, mulher branca e loira que está sentada atrás de uma mesa, usando roupas brancas. ela conversa com Putin, que está à sua frente, de costas para a câmera, de modo que é possível ver apenas sua calvície nos cabelos grisalhos curtos
Maria Lvova-Belova, comissária russa de direitos da infância, em encontro com o presidente Vladimir Putin nos arredores de Moscou - Mikhail Metzel - 16.fev.23/Sputnik/Pool via Reuters

Muitas das crianças que Lvova-Belova trouxe da Ucrânia de fato já se tornaram russas, pelo menos segundo seus passaportes, graças a um decreto encomendado por ela e assinado pelo presidente Vladimir Putin para acelerar a adoção de crianças ucranianas.

Lvova-Belova vem usando os poderes que o decreto lhe deu para transferir à Rússia até 16 mil crianças, segundo Kiev. Algumas relataram um processo que envolve coerção, mentiras e uso de força. Muitas foram colocadas em lares para se tornarem cidadãs russas e serem sujeitas à reeducação.

O Tribunal Penal Internacional (TPI) qualificou os atos de Lvova-Belova como um crime de guerra. No mês passado, quando o TPI, em Haia, emitiu mandados de prisão relacionados à invasão da Ucrânia, citou apenas dois russos por nome: Putin e Lvova-Belova. Ela é odiada na Ucrânia, onde é vista como criminosa de guerra. EUA e Reino Unido a submeteram a sanções em 2022.

Em seu país, porém, é retratada como o arquétipo da mulher admirada: conservadora, muito religiosa e mãe de muitos filhos, além de defensora dedicada dos direitos de crianças e pessoas com deficiência.

Para o Kremlin, ela liderou a retirada humanitária de apenas cerca de 2.000 órfãos e crianças abandonadas. Mesmo deixando de lado a máquina de propaganda russa, não há dúvida de que ela é mãe e tutora de muitas crianças. Quando foi nomeada para seu posto, em outubro de 2021, disse a Putin que tinha nove filhos, cinco dos quais biológicos e quatro adotados, e que estava cuidando de outros 13.

Agora, sua biografia oficial a identifica como mãe de dez filhos, já que ela adotou um menino adolescente de Mariupol, na Ucrânia. Lvova-Belova tem 38 anos e cresceu em Penza, cidade de 500 mil habitantes situada 640 km ao sul de Moscou. Ela conheceu seu marido, Pavel Kogelman, quando era adolescente e cantava num coral de igreja. No ensino médio, estudou regência e mais tarde deu aulas de violão.

Por mais de dez anos Lvova-Belova se dedicou a ajudar crianças e pessoas com deficiência em situação precária. Um de seus primeiros projetos públicos foi cuidar de bebês abandonados pelos pais.

Em 2008, quando já tinha dois filhos, cofundou a organização Blagovest, que ajudava órfãos a se adaptar socialmente. A cofundadora Anna Kuznetsova tornou-se uma espécie de desbravadora para Lvova-Belova, tendo primeiro ficado conhecida no campo dos serviços sociais e depois ingressado na política.

Segundo Oleg Sharipkov, diretor-executivo da Fundação da União Civil de Penza, ambas ficaram muito conhecidas pelo trabalho. Após criarem a Blagovest, seguiram rumos distintos —Lvova-Belova focou a atuação com deficientes e Kuznetsova teve papel ativo no movimento antiaborto—, mas seguiram amigas.

"Elas tinham boa reputação na comunidade. Fizeram algumas coisas muito boas", diz Sharipkov. Então, segundo ele, ocorreu "a virada", quando perceberam que poderiam levantar recursos substanciais com os governos regional e federal. "Começaram a fazer tudo para se aproximar de quem estava no poder."

Lvova-Belova conheceu Putin em 9 de março de 2022, num encontro divulgado publicamente. Menos de duas semanas haviam se passado desde a invasão da Ucrânia por tropas russas, mas ela disse ao presidente que 1.090 órfãos já haviam chegado ao país. "É claro que os russos têm coração grande e já estão fazendo fila para cuidar dessas crianças. O que o senhor acha?", perguntou ela, acrescentando que apenas crianças que tivessem documentos russos poderiam ser aceitas.

Havia "trâmites legais" a serem enfrentados antes que crianças não russas pudessem ser adotadas, disse ela a Putin, que afastou essas preocupações imediatamente. "Estamos diante de uma emergência", disse ele. "Precisamos pensar nos interesses das crianças, não nos trâmites burocráticos."

Em maio, Putin lançou um decreto que derrubou entraves à concessão de passaportes russos às crianças.

Tendo recebido suas ordens, Lvova-Belova começou a viajar às áreas da Ucrânia ocupadas, percorrendo orfanatos, levando suprimentos e frequentemente levando crianças de volta para a Rússia. Em meados de julho, postou na plataforma social russa Vkontakte que 108 crianças do Donbass receberiam cidadania russa naquela semana. Quando deixou um grupo delas com seus pais de acolhida, enxugou lágrimas.

Mas Lvova-Belova é acusada de violações graves da lei internacional, como tirar crianças de orfanatos e hospitais em áreas da Ucrânia sob ocupação russa, apesar de muitas delas terem familiares que estariam dispostos a cuidar delas. Não obstante as acusações contra ela, as sanções e o mandado internacional de prisão, Lvova-Belova defende seus atos com firmeza.

"Cheguei ao inferno", disse ela ao canal conservador e pró-governo Tsargrad, em novembro, sobre sua primeira viagem a Mariupol. "Não me envergonho. Minha equipe não deu 100% de si, deu 150%."

Tradução de Clara Allain

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