Hoje, elites de Brasil e Argentina não apoiam golpes, diz promotor de 'Argentina, 1985'

Luis Moreno Ocampo defende mecanismo regional contra crime organizado e elogia interesse de Lula em mediar paz na Ucrânia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Buenos Aires

Obter uma declaração de Luis Moreno Ocampo sobre a política argentina não é fácil, ainda que o advogado seja figura de peso histórico no país –ele foi promotor-adjunto no julgamento que levou os militares que lideraram a ditadura à prisão, tema do filme "Argentina, 1985", ganhador do Globo de Ouro.

Nos EUA há duas décadas, Ocampo, 70, esquiva-se de críticas a personagens de uma política dominada pelo personalismo. Critica, por outro lado, a persistência de figuras que relativizam a violência da ditadura —"Pensei que Argentina havia superado isso"— e diz que as instituições locais dão provas de resiliência.

O advogado argentino Luis Moreno Ocampo durante entrevista à agência AFP em Malibu, na Califórnia
O advogado argentino Luis Moreno Ocampo durante entrevista à agência AFP em Malibu, na Califórnia - Robyn Beck - 6.mar.23/AFP

Em entrevista por videoconferência durante passagem por São Paulo para apresentar "Argentina, 1985" e firmar uma série de parcerias com a USP na área de pesquisa, ele afirma não ver chance de um golpe no Brasil ou na Argentina. Critica ainda a falta de um mecanismo regional para combate ao crime organizado.

Primeiro procurador do Tribunal Penal Internacional, em Haia, cargo que ocupou de 2003 a 2012, Ocampo também comenta a ordem de prisão contra Vladimir Putin, defende o papel da China na mediação da Guerra da Ucrânia e elogia as tentativas de Lula de participar do diálogo. "É interessante que ele se meta."

O presidente Alberto Fernández mais de uma vez criticou a Suprema Corte, dizendo que o tribunal tem enfraquecido a democracia. O que pensa disso? Já não vivo na Argentina há 20 anos. Quando vou, tento promover um diálogo entre diferentes grupos e sempre fracasso. Por isso não opino sobre temas internos. No mundo todo a democracia passa por estresses. Assim como os mais jovens pedem que gênero não seja entendido de uma forma binária, o debate político tampouco pode ser binário, mas as redes sociais têm levado a isso. No caso da Suprema Corte, houve uma decisão que interrompeu algumas eleições locais, mas de pessoas que queriam permanecer no poder por ainda mais tempo, o que me parece um debate em aberto. A corte tem o papel de garantir certas ordens constitucionais.

Não temos consciência da importância de instituições que levamos séculos para desenvolver. Mas há muita gente que não se sente representada. Muitas pessoas que foram a Brasília no 8 de Janeiro pensavam defender a democracia. A mesma situação se deu no 6 de Janeiro nos EUA.

Sobre o 8 de Janeiro, vê relações com o fato de o Brasil não ter julgado os líderes da ditadura? O julgamento na Argentina foi extraordinário. Àquela altura as ciências jurídicas diziam que não se devia questionar o passado. Hoje os golpes não são feitos por militares, mas pelas elites, que utilizam os militares para chegar ao poder. No Brasil e na Argentina as elites não apoiam um golpe de Estado.

A Argentina terá eleições em breve. Como o senhor vê o cenário eleitoral? Há um tema de segurança para o qual não se discutem estratégias. O crime organizado, brutal em Rosário, por exemplo, nunca é local. Tem conexões internacionais, e não analisamos isso. Não há um sistema na região, com Chile e Brasil. Nossas máfias são regionais, e nossas políticas, nacionais. Isso não funciona. A solução não é ser linha-dura, mas ter regras. Ocorre que não temos sistemas regionais, e há corrupção nas polícias. Devíamos armar um sistema regional de comunicação sobre crime organizado. Não estamos fazendo isso. Segurança não tem de ser tema da esquerda ou da direita. Tem que ser patrimônio de toda a sociedade.

O que pensa da possibilidade de Javier Milei e de sua candidata a vice, Victoria Villarruel, que dizem que "não houve 30 mil vítimas" da ditadura, chegarem à Presidência? Não conheço Milei pessoalmente e não sei bem o que diz. Mas na minha época um problema que havia era que Álvaro Alsogaray, representante do pensamento econômico liberal, era totalitário. De alguma forma, os que propunham economia liberal propunham ditadura. Pensei que a Argentina havia superado isso.

Luis Moreno Ocampo, então promotor adjunto do julgamento dos militares, durante audiência em Buenos Aires; ao seu lado, o promotor principal, Julio Cesar Strassa
Luis Moreno Ocampo, então promotor adjunto do julgamento dos militares, durante audiência em Buenos Aires; ao seu lado, o promotor principal, Julio Cesar Strassa - 13.set.85/Pool via AFP

O senhor já disse que a democracia, as instituições e o capitalismo não estão dando respostas. Os mais pobres não se beneficiam da economia de mercado e da proteção judicial. Há um problema estrutural sério. Mas veja: a atual vice-presidente do país [Cristina Kirchner] está sendo julgada. Isso é sinal de saúde democrática. Podem criticar as decisões das cortes, mas apelam e a cumprem.

Cristina diz ser vítima de lawfare, quando juízes agem por razões políticas. Na época militar, os militares poderiam ter falado de lawfare. Mas não era isso, pois tínhamos provas. O importante é seguir o caminho da lei e ter provas sólidas. No caso de Cristina Kirchner, os procuradores fizeram uma investigação minuciosa, e seus advogados são muito bons. É um debate jurídico que temos que esperar. Pode haver essa discussão mais caótica, mas, de qualquer modo, a Argentina conserva instituições que funcionam.

O senhor atuou no Tribunal de Haia, que emitiu um mandado de prisão contra Vladimir Putin. A Rússia, porém, não é signatária do Estatuto de Roma, tampouco os países para os quais o presidente russo mais viaja, como a Belarus. Qual é, então, a importância disso? Há duas instituições que podiam intervir. Uma delas é o Conselho de Segurança da ONU, no qual a Rússia tem poder de veto e, por isso, nada vai passar. A outra é o TPI, que confirmou que há uma corte mundial que diz que era crime algo que a Rússia apresenta como um ato beneficente. Isso funciona como uma reflexão. Putin terá que pensar o que fazer.

A China propôs um acordo interessante para o fim da guerra, mas a proposta não é muito discutida. Não vamos ver um debate sobre isso no New York Times. Mas [o presidente francês] Emmanuel Macron foi à China. Lula também. O tema da Ucrânia mostra a pobreza institucional do mundo em que vivemos.

O Brasil tem um papel? Faz falta que o Sul Global intervenha. Que países menos envolvidos intervenham. É interessante que Lula se meta.

O senhor liderou a ordem de prisão contra o ex-ditador do Sudão Omar al Bashir, que depois foi retirado do poder. O país hoje vive à beira de uma guerra civil. Imaginava que isso poderia acontecer? A primeira Guerra Fria produziu muito conflito no mundo, em especial no Sul Global. E a segunda Guerra Fria está começando. O Sudão me parece o primeiro caso de conflito desse período no qual diferentes grupos apoiam diferentes grupos do governo em um conflito civil.


Raio-X | Luis Moreno Ocampo, 70

Advogado nascido em Buenos Aires, foi promotor-adjunto do Julgamento das Juntas na Argentina em 1985 e promotor do Tribunal Penal Internacional, de Haia. Vive nos EUA.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.