Descrição de chapéu União Europeia drogas

Proposta de legalização da maconha frustra sociedade civil na Alemanha

Plano considerado cauteloso em excesso vai permitir cultivo por pessoas físicas e associações, mas sem venda livre

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Berlim

O plano do governo da Alemanha para descriminalizar o cultivo e o uso de maconha no país desapontou empresas, ativistas e organizações da sociedade civil.

O sentimento declarado, tanto pelos clubes que pretendiam se organizar para facilitar o consumo quanto por companhias que esperavam lucrar com a legalização ampla, é de frustração com as medidas limitadas anunciadas pelo governo de Olaf Scholz —o plano não prevê a venda livre em lojas, por exemplo.

A coalizão das três siglas que formam o governo alemão, o Partido Social-Democrata, os Verdes e o Partido Liberal, anunciou no mês passado que pretende apresentar uma legislação de "dois pilares" —como descreveu o ministro da Saúde alemão, Karl Lauterbach, em uma entrevista coletiva ao lado dos ministros da Agricultura e da Justiça.

Pés de maconha em estufa de empresa que a produz para fins medicinais em Dresden, na Alemanha - Jens Schlueter - 12.abr.23/AFP

O primeiro pilar deve permitir que maiores de 18 anos cultivem até três plantas da cânabis e possam carregar até 25 gramas de maconha para consumo próprio. Também permite que o cultivo e a distribuição em maiores quantidades sejam organizados por social clubs, associações sem fins lucrativos.

Essas instituições poderão ser formadas por até 500 pessoas cada uma e só terão permissão de comercializar a droga entre membros. O consumo da maconha em espaços comuns, como acontece nas famosas coffee shops de Amsterdã, na Holanda, não será permitido.

O segundo pilar prevê a criação de "regiões modelo" em que a compra e a venda da maconha será liberada em uma área restrita, como um município. Essa fase de testes deve durar cinco anos, de acordo com Lauterbach, para quem o objetivo da medida "é proteger os jovens, combater o mercado ilegal e reduzir a criminalidade". "Não queremos criar novos problemas, mas ajudar a resolver um problema mal resolvido."

O texto que vai ser enviado ao Parlamento ainda não foi publicado, mas, de acordo com a imprensa alemã, o documento deve trazer mais restrições: o consumo em público deve ser proibido entre 7h e 20h e também em um raio de 250 metros de escolas, creches e parques infantis.

Ativistas da legalização da maconha que pressionam há anos pela liberação enxergam um plano confuso e sem segurança jurídica. Oliver Waack-Jürgensen, presidente do Cannabis Social Club (CSC) High Ground, de Berlim, diz estar desapontado com as medidas e com a demora.

"O que o governo diz é que vai dar a responsabilidade da distribuição aos CSCs, mas vai restringir o direito de associação", diz. "Nós precisamos da participação de lojas e empresas além dos clubes, porque não podemos nem queremos cobrir a demanda de toda a população. Nós estamos aqui para quem não quiser comprar de empresas e para conscientizar sobre cultivo e um consumo saudável."

O CSC High Ground foi criado em outubro para se preparar para a legalização, que já estava prevista desde 2021. Na época, logo após as eleições, os partidos que formam o governo assinaram o acordo de coalizão que colocou Scholz no poder. Esse documento, que delineia as prioridades do novo governo e é essencial no modelo parlamentarista da Alemanha, já mencionava a intenção de descriminalizar a maconha.

Mas agora, diz Oliver, o recuo nesses planos mostra uma política "fraca e inconsequente" do governo e do ministro da Saúde. "Ele [Karl Lauterbach] está mal informado e passa informações inconsistentes. Assim não conseguimos trabalhar."

Como deve funcionar a legalização na Alemanha

Governo delineou proposta, mas ainda não divulgou texto da legislação

  1. Liberação da posse

    Pessoas físicas vão poder carregar até 25 gramas de maconha para consumo próprio

  2. Liberação do cultivo

    Fica permitido o cultivo de até 3 plantas fêmeas da cannabis em casa

  3. Social clubs

    Associações com até 500 membros vão poder cultivar e distribuir a maconha em maior escala

  4. Regiões modelo

    A venda em lojas poderá acontecer apenas nesses locais restritos; proposta não foi detalhada

Empresas que se preparavam para a legalização também criticam a atuação do governo na área. "Nos foi prometido muito mais nos últimos anos, nos foi prometida uma legalização de verdade. E o que vemos agora do governo e do ministro Lauterbach é um recuo na direção de organizações não comerciais", afirma Pia Marten, CEO da empresa Cannovum, que vende cânabis para fins medicinais na Alemanha.

Fundada em 2019, a Cannovum é uma das poucas empresas que trabalham com a substância a terem ações na bolsa de valores alemã. De acordo com Marten, a ideia é atrair investidores para entrar no mercado da venda de maconha para consumo próprio —o que não tem previsão de acontecer no país. "Isso causa muita insegurança em investidores e em outros participantes do mercado", diz ela.

"É um passo na direção certa, da legalização total. Mas, a depender de como vai ser regulamentado, o modelo atual cria muitas possibilidades para que o mercado clandestino continue ativo."

Para o juiz Andreas Müller, que atua na corte equivalente ao Juizado da Infância e Juventude na cidade de Bernau, próxima a Berlim, a política de drogas da Alemanha falhou e só serviu para estimular a criminalidade e colocar jovens em risco.

"Jovens são estigmatizados e criminalizados por consumir maconha, mas nós não conseguimos atingir as pessoas que realmente têm um problema com drogas", diz o magistrado.

"Nos últimos 50 anos, meio milhão de pessoas foram presas, e milhões foram condenados ou tiveram problemas com a Justiça [devido a casos relacionados à maconha]. As consequências dessa política para cidadãos comuns e para as famílias são muito piores que as consequências do uso da droga."

Müller faz parte da organização Law Enforcement Against Prohibition, que reúne policiais, procuradores e juízes contra a guerra às drogas. O magistrado já chegou a enfrentar um processo de suspeição em razão de declarações que deu na imprensa a favor da descriminalização —a ação foi arquivada em 2021.

A legalização encontra ainda resistência da oposição, principalmente de regiões mais conservadoras do país, como a Baviera. O governador Markus Söder, uma das principais figuras de direita do país, disse que os planos do governo são um "caminho errado" e um "projeto ideológico". O político do partido CSU aventou a possibilidade de judicializar o caso para impedir a descriminalização da maconha na Baviera.

O jornalista está na Alemanha como parte do International Journalists Programme - IJP.

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