Entenda a reforma judicial em Israel apontada como ameaça à democracia

Primeira parte do projeto defendido por Binyamin Netanyahu foi aprovada no Parlamento

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São Paulo

O Parlamento de Israel aprovou nesta segunda (24) a primeira parte da controversa reforma judicial que limita os poderes da Suprema Corte. A medida é apontada como uma afronta à democracia e tem estimulado protestos massivos, numa das maiores crises da história local recente.

A lei aprovada versa sobre o chamado "padrão de razoabilidade", recurso até então usado por tribunais para invalidar decisões do governo e que impacta, entre outros pontos, a nomeação de ministros.

Trata-se da aprovação da primeira de uma série de propostas que buscam enfraquecer o Judiciário e aumentar o poder do Parlamento, controlado pelo governo. A seguir, entenda a reforma judicial.

Manifestantes protestam contra reforma judicial na cidade de Jerusalém, em Israel
Manifestantes protestam contra reforma judicial na cidade de Jerusalém, em Israel - Ronen Zvulun/Reuters

O que é a reforma judicial?

A reforma é ampla e envolve vários projetos de lei para limitar o poder do Judiciário. As medidas foram apresentadas como parte das leis básicas, legislação que funciona como espécie de Constituição do país.

Diferentemente do Brasil, Israel não possui uma Constituição escrita, mas usa as leis básicas para definir o papel das principais instituições e as relações entre as autoridades do Estado.

Em linhas gerais, a reforma dá ao Parlamento poder para anular decisões. Também prevê a criação de um comitê para revisar as nomeações de todos os juízes do país, inclusive os integrantes da Suprema Corte. Na prática, o projeto garante superpoderes ao premiê israelense, Binyamin Netanyahu, e seus aliados.

O que já foi aprovado até agora?

A primeira lei aprovada proíbe que tribunais usem o chamado "padrão de razoabilidade" para invalidar decisões do governo. A medida impacta, por exemplo, a nomeação de ministros.

Em janeiro, o Supremo usou o padrão de razoabilidade ao determinar o afastamento do então número 2 do governo, Aryeh Deri, devido a uma condenação anterior por fraude fiscal —o político confessou o crime como parte de um acordo judicial para escapar da prisão.

O que é o 'padrão de razoabilidade'?

Como Israel não tem uma Constituição escrita, os juízes tomam as decisões baseadas nos "motivos razoáveis". Uma decisão "não razoável" é algo que, em tese, contraria os interesses da população.

A Justiça israelense também pode considerar uma decisão não razoável se, por exemplo, concluir que a sentença foi tomada sem analisar todas as questões relevantes. Até esta segunda, a Justiça local costumava usar o padrão de razoabilidade principalmente para bloquear nomeações ministeriais e contestar decisões administrativas e de planejamento. As decisões eram baseadas em precedentes.

A própria definição do conceito de razoabilidade envolve, portanto, certo grau de subjetividade, e sua ambiguidade motivava debates antes mesmo da proposta da reforma. Analistas, porém, dizem que a corte não usou o mecanismo com tanta frequência quanto os críticos afirmam. Desde 2003, o tribunal rejeitou 52 das 64 petições para derrubar uma nomeação do governo com base na razoabilidade, segundo o Tachlith, grupo de pesquisa de Tel Aviv.

O padrão de razoabilidade é um dos pontos mais polêmicos da reforma judicial. Críticos alegam que a aplicação da medida é subjetiva. Também afirmam que o recurso é vago –em vez de atuarem apenas como fiscalizadores do governo, os juízes substituiriam o papel de autoridades em áreas diversas. Por outro lado, a proibição do conceito aumenta o poder do Executivo e pode beneficiar integrantes do governo acusados de corrupção.

Como funciona a Suprema Corte de Israel?

O tribunal atualmente é composto por 15 juízes —o número é estabelecido pelo Knesset, o Parlamento de Israel, e tem variado ao longos dos anos. O magistrado mais velho é o presidente da corte.

Os juízes são nomeados pelo Comitê de Seleção Judicial, que mantém independência em relação ao governo e é formado por três magistrados da Suprema Corte (incluindo o presidente), dois ministros (um dos quais é o da Justiça), dois parlamentares e dois representantes da Ordem dos Advogados de Israel.

A Suprema Corte decide a legalidade de decisões em níveis municipal, estadual e federal. Trata-se da mais alta corte de Israel, com jurisdição que se aplica a todos os outros tribunais do país. Os juízes devem se aposentar aos 70 anos.

O que diz o governo Netanyahu?

Ao anunciar o plano, em janeiro, o ministro da Justiça, Yariv Levin, fez críticas à Suprema Corte e afirmou que a reforma tem o objetivo de restaurar a confiança da população no sistema. "Pessoas que não votamos decidem por nós. Isso não é democracia", disse ele na ocasião.

O discurso é ecoado por Netanyahu, cujo governo é o mais à direita da história de Israel. O premiê diz que a reforma é necessária para conter o ativismo do que chama de Justiça tendenciosa. Na mesma linha, defensores do governo afirmam que as mudanças são necessárias para restaurar o equilíbrio entre os Poderes. Também alegam que, ao restringir intervenções judiciais, as medidas irão facilitar a governança.

O que dizem os críticos da proposta?

Críticos à proposta apontam que a reforma é parte de uma guinada autoritária de Netanyahu, que voltou ao poder em dezembro apoiado em uma coalizão com integrantes da extrema direita. Os opositores dizem que as mudanças removeriam os contrapesos nos quais um Estado democrático se baseia.

Analistas apontam ainda que a reforma pode comprometer a separação entre os Poderes e, em última análise, corroer a democracia de Israel. Também afirmam que as mudanças podem aproximar Israel de uma ditadura ou de um regime como o da Hungria, classificada pelo Parlamento Europeu de "autocracia eleitoral" —em que há eleições multipartidárias, mas outros pilares democráticos estão ausentes.

O que Netanyahu tem a ganhar com a reforma?

Netanyahu está sendo julgado por acusações de suborno, fraude e quebra de confiança. Segundo especialistas, a reforma pode beneficiá-lo nos processos criminais. O governo poderia, por exemplo, substituir juízes e nomear aliados. Analistas também afirmam que Bibi, como o premiê é conhecido, pode utilizar a ameaça da reforma como moeda de barganha para negociar acordos com a Justiça.

Como a sociedade israelense tem reagido?

Milhares de manifestantes têm protestado contra a reforma há meses, numa das maiores tensões internas da história de Israel. Os atos atraíram o apoio de seculares e religiosos, ativistas pela paz e militares, além de grupos de direita e de esquerda. Até mesmo presidentes de bancos se juntaram ao coro de críticas —analistas alertam para o risco da fuga de investidores caso a reforma seja implementada.

Alguns grupos ainda organizam paralisações e greves. Cerca de 10 mil reservistas das Forças Armadas —instituição central da sociedade israelense— afirmaram que cruzariam os braços em protesto.

Diante da pressão, Netanyahu disse ter abandonado um item crucial na proposta. Em entrevista ao americano The Wall Street Journal, publicada em junho, afirmou ter derrubado a regra que permitiria ao Parlamento anular decisões da Suprema Corte por maioria simples.

Como a reforma pode impactar os palestinos?

Os críticos da reforma temem que os direitos das minorias possam ser impactados. Especialistas dizem que o enfraquecimento do Judiciário poderia, por exemplo, desestimular os palestinos a buscar a defesa de seus direitos caso acreditem que os tribunais estejam alinhados politicamente ao governo.

Ainda que ativistas afirmem que os tribunais consolidaram a ocupação israelense da Cisjordânia, algumas decisões são favoráveis aos palestinos. No ano passado, um juiz suspendeu os despejos de palestinos no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, onde grupos judeus reivindicaram a propriedade de terras.

Quais são os próximos passos da reforma?

O Knesset, o Parlamento israelense, entra em recesso no dia 30 de julho e não volta até outubro, devido às férias de verão e a feriados (Rosh Hashaná e Yom Kippur, ambos em setembro). Nesse período, embora os comitês legislativos sigam ativos, em geral não há votações. Netanyahu deve aproveitar a pausa para tentar outra rodada de negociação com líderes da oposição, medida que já fracassou outras vezes.

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