Universidade de Mariupol vira símbolo da resistência durante Guerra da Ucrânia

Instituição mantém atividades mesmo após ter sede tomada por russos e perder dezenas de alunos para o conflito

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Kiev | The New York Times

Antigamente, havia capelos, becas e canapés. Mas, na semana passada, a Universidade Estadual de Mariupol só pôde oferecer uma modesta cerimônia para a turma de 2023 que se formava em seu campus no exílio, a quase 640 km de sua cidade natal devastada.

Dos 500 graduados, apenas cerca de 60 foram a Kiev receber seus diplomas pessoalmente, em uma residência universitária ainda em construção. Os demais, dispersos pelo território e pelo exterior, participaram virtualmente quando possível.

Mulher de cabelo loiro comprido de vestido presto e salto branco sentada em carteira em sala de aula
A estudante Karolina Borovikova, que se formou em história e fez mestrado em tradução para o italiano, no prédio provisório da Universidade Estadual de Mariupol, em Kiev - Laura Boushnak - 20.jul.23/The New York Times

Foi um momento agridoce para os formandos de Mariupol, cidade que se tornou sinônimo da brutalidade e devastação antes de sucumbir à Rússia no ano passado. Mesmo que por meio de telas, a universidade ofereceu a sensação de avançar em direção de algo além da guerra, um alívio para as realidades cruéis que todos vivenciaram e testemunharam e não serão esquecidas.

Valeria Tkatchenko, 21, continuou os estudos em ecologia e educação mesmo quando o marido, Vladislav, passava por tratamento após perder uma perna na batalha de Azovstal —a siderúrgica em Mariupol que foi último lugar da cidade a ser tomado pelos russos, em maio de 2022. "Era muito difícil me concentrar, mas as aulas foram uma distração em relação à guerra. Uma espécie de salvação, até", diz ela.

Karolina Borovikova, 23, partiu para um intercâmbio na Itália quatro dias antes da invasão e por lá ficou, mas seu marido, Nikita, seguiu em Mariupol e também lutou em Azovstal. Na quinta (20), ela completou um bacharelado em história e um mestrado em letras com especialização em tradução do italiano, mas Nikita não estava lá. Ele é prisioneiro de guerra da Rússia, e sua mulher não tem notícias dele desde maio.

"Todos os dias sonho com a data em que estaremos juntos e penso como vou ajudá-lo a superar a provação que está sofrendo agora", diz ela, chorando. "Não sei como ajudá-lo e não sei como tirá-lo de lá."

A universidade interrompeu suas atividades em 24 de fevereiro de 2022, dia em que a Rússia iniciou uma ofensiva em grande escala contra a Ucrânia e as forças lideradas por Vladimir Putin atacaram Mariupol, no mar de Azov, no sudeste, com mísseis, projéteis e bombas.

Mikola Trofimenko, o reitor da universidade, mudou imediatamente seus servidores de computador para a cidade de Dnipro, a noroeste, que permaneceu fora do alcance dos russos. Ele retornou brevemente a Mariupol, mas como quase todos os moradores fugiu quando as tropas de Moscou devastaram a cidade que um dia já abrigou 440 mil pessoas. As aulas foram retomadas online em abril de 2022, e a maioria dos alunos voltou a estudar, apesar da tensão e das perdas.

"Os alunos são heróis por continuarem os estudos depois de tudo o que viveram, e nós os celebramos. Mas a verdadeira celebração será quando a guerra acabar", diz Trofimenko, 38.

A universidade, fundada em 1991, tinha quase 5.000 alunos antes da guerra e se tornou conhecida por seu programa de estudos helênicos, em parte devido à quantidade de descendentes de gregos que vivem em Mariupol. Trofimenko afirma que hoje a instituição tem 3.200 alunos. Ele diz que, segundo as informações às quais teve acesso, oito estudantes e oito funcionários foram mortos na guerra, incluindo dois alunos que serviram no Exército ucraniano. Cerca de cem matrículas de estudantes do quarto ano não são mais consideradas ativas. "Eles provavelmente não estão vivos", diz Trofimenko.

A universidade foi preservada em formato digital —os servidores agora estão em Kiev—, mas seu lar físico foi em sua maior parte destruído e tomado por autoridades russas. Cerca de dez funcionários permaneceram em Mariupol e foram acusados de colaborar com a ocupação.

A reconstituição da universidade em Kiev "desempenha um papel importante e essencial para mantermos a identidade de Mariupol", diz ele. "Esses alunos perderam tudo, e o que viram em Mariupol é difícil de esquecer. Eles precisam de lugares que possam chamar de lar."

O governo ucraniano deu à universidade um prédio na região de Solomianski, em Kiev, que foi usado como centro de educação militar e estava quase sem uso havia décadas. Cartazes da era soviética, de bases militares e instalações nucleares americanas, ainda estão pendurados. Uma funcionária conta ter chegado ao novo local e encontrado uma edição de 1991 do jornal soviético Pravda sobre a mesa.

A formatura, realizada em uma das poucas áreas reformadas do novo campus, evidenciou não apenas a obstinada resiliência dos ucranianos, mas também a tensão constante da guerra. Enquanto ocorria a cerimônia, alguns participantes viam postagens de redes sociais em seus celulares que mostravam os ataques de mísseis em Odessa e em outras cidades dos últimos dias.

O prédio da universidade, que também abriga um centro de ajuda para deslocados de Mariupol, está sendo reformado e deve ser inaugurado no outono no hemisfério Norte, em formato híbrido. O cheiro de tinta fresca paira no ar, e a universidade adotou um novo logotipo, uma pomba, símbolo da paz.

Entre as prioridades da instituição está a implementação de terminais de impressão para que os diplomas perdidos por seus graduados durante a guerra possam ser reimpressos.

Existem ainda planos para construir dormitórios, habitações para professores e suas famílias e até mesmo uma versão menor da antiga praça central de Mariupol, adjacente ao prédio principal. E, claro, como a guerra continua, a universidade tem um suprimento de geradores e conexões de internet por satélite Starlink, assim como um abrigo antiaéreo no porão.

"Precisamos manter nossos alunos e nossa equipe", diz Trofimenko. "Podemos libertar a cidade, podemos reconstruir —mas, sem as pessoas, para quem estaríamos fazendo isso?"

As inscrições para o próximo ano já estão abertas.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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