Eleitores nos EUA dizem sentir nojo de classe política

Para americanos, crise no Congresso mostra que líderes se preocupam mais com lutar entre si do que com população

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The New York Times

O celular da contadora Whitney Smith, 35, vibrou ao receber uma mensagem de texto da mãe dela, alertando-a sobre a mais recente bagunça em Washington: "Ultradireita destituiu o presidente da Câmara. Caos total."

Smith, que não é afiliada a nenhum partido segundo o seu cadastro eleitoral, não queria nada a ver com isso. Moradora de um subúrbio em Phoenix, no Arizona, ela conta que tenta se envolver na vida cívica votando, atuando como voluntária em projetos locais e participando das assembleias comunitárias de sua cidade.

Mas o pandemônio de uma paralisação do governo evitada por pouco e de um golpe na liderança da Câmara confirmou os sentimentos mais cínicos dela —e de muitos americanos— em relação ao governo federal. "Pensei: 'Senhor, e agora?'", diz Smith.

Mulher vota em Chicago em eleição para prefeito da cidade, em fevereiro
Mulher vota em Chicago em eleição para prefeito da cidade, em fevereiro - Kamil Krzaczynski - 28.fev.23/Getty Images/AFP

Reclamar de política é um passatempo tradicional nos Estados Unidos, mas ultimamente, o humor político do país tem caído para alguns dos piores níveis registrados. Depois de enfrentar o tumulto da presidência de Donald Trump, uma pandemia, a insurreição no Capitólio, inflação, várias tentativas de impeachment presidenciais e as onipresentes mentiras dos republicanos de ultradireita sobre a suposta fraude das eleições de 2020, os eleitores dizem que se sentem cansados e irritados.

Em dezenas de entrevistas recentes em todo o país, eleitores jovens e idosos expressaram grande pessimismo em relação à próxima eleição presidencial. O sentimento transcende não só as linhas partidárias como também a crença já incerta nas instituições políticas.

A Casa Branca e o Congresso têm injetado bilhões de dólares para consertar e melhorar estradas, portos, oleodutos e a rede de internet do país. Os Poderes aprovaram centenas de bilhões para combater as mudanças climáticas e reduzir o custo dos medicamentos com receita. O presidente Joe Biden cancelou bilhões a mais das dívidas estudantis.

Essas conquistas não foram, porém, totalmente reconhecidas pelos eleitores. Um pequeno grupo de republicanos de ultradireita levou o governo à beira de uma paralisação e depois mergulhou o Congresso no caos quando impulsionou a votação que, com o apoio dos democratas, derrubou o presidente da Câmara, Kevin McCarthy, republicano da Califórnia.

Democratas apostam que os eleitores culparão os republicanos pelos problemas. Mas muitos deles, ao serem entrevistados, dizem que viram todo o episódio como evidência de uma enorme disfunção em Washington e acusam a classe política como um todo de ter sido consumida por disputas em vez de se dedicar ao seu trabalho, que é servir a população.

"Eles parecem tão desconectados da gente", afirma Kevin Bass, 57, um bancário que mora em New Home, cidade rural no oeste do Texas. Ele faz parte do conselho escolar local e tem três filhos: dois estudam em colégio público e o outro faz faculdade. Ele se descreve como conservador e conta ter votado em Donald Trump nas duas últimas eleições. "Realmente não vejo nenhum dos partidos beneficiando nosso país."

Eleitores dizem que as brigas em Washington e o flerte dos republicanos com o calote da dívida e a paralisação do governo colocaram salários, assistência médica e benefícios à população em risco em um momento em que todos estão preocupados com pagar contas cada vez maiores de saúde e de alimentação, além de lidar com um clima que, cada vez mais quente, gera desastres naturais em quase todos os cantos do país.

"Desgosto não é uma palavra forte o suficiente", diz Bianca Vara, democrata e avó de cinco netos que administra uma barraca em uma feira de antiguidades na região de Atlanta.

Várias pessoas disseram que ignoram notícias políticas de forma intencional, concentrando-se em detalhes como o preço do requeijão ou em assuntos totalmente desconectados da política, como a pontuação do Chicago Bears na liga de beisebol e a presença de Taylor Swift no jogos do Kansas City Chiefs, time de futebol americano.

Quando a mãe de Smith enviou a notícia da destituição de McCarthy para o grupo da família, ninguém respondeu. Em dado momento, Smith retomou a conversa ao mandar uma foto das prateleiras novas que acabara de instalar em casa.

"Quem é McCarthy? Nem sei", diz Rosemary Watson, 38, uma eleitora independente registrada em Mesa, no Arizona —estado-pêndulo que elegeu candidatos democratas nas últimas duas eleições, mas por uma pequena margem de vantagem. "Fiz essa escolha de propósito, para a minha própria saúde e bem-estar."

Watson, membro da nação indígena cherokee, votou em Trump em 2020. Ela diz que não se sentiu politicamente conectada com as ações que Biden tomou para conservar terras consideradas sagradas para as comunidades nativas americanas ou para liberar bilhões de dólares em financiamentos para elas. Ela afirma que apoiaria o deputado Robert Kennedy Jr. —que é um ativista antivacina— na corrida presidencial de 2024 porque ele daria um choque no sistema bipartidário.

Cynthia Taylor, 58, assistente jurídica da área de Houston e eleitora do Partido Republicano, ficou chocada com a destituição de McCarthy e a iminente paralisação do governo. Para ela, o episódio foi um sintoma da crescente falta de regras na sociedade americana.

"Parece que estamos começando a seguir uma linha em que ou eu concordo contigo ou te expulso", diz ela, cujo marido trabalha em uma fábrica de rifles. "Todo mundo só pensa em si mesmo, nos seus 15 minutos de fama."

Uma pesquisa realizada pelo Pew Research Center em julho constatou que o país está unido por seu descontentamento com seus líderes, um sentimento que vai além de divisões raciais, etárias e partidárias. Cerca de 65% dos americanos entrevistados pela organização responderam que se sentiam exaustos quando pensavam em política.

Apenas 16% dos adultos americanos disseram confiar no governo federal, uma das porcentagens mais baixas do quesito nas sete décadas em que a pesquisa é realizada. Quase 30% das pessoas responderam não gostar dos partidos Democrata e Republicano, um recorde histórico. Paradoxalmente, os americanos nunca compareceram às urnas em números tão grandes quanto nos últimos anos.

Vários eleitores democratas afirmam que sua repulsa ao estado da política americana tem origem em uma fúria ressentida contra Trump e as mentiras que incitaram os invasores de 6 de janeiro. Ao mesmo tempo, diversos deles dizem temer a perspectiva de outra disputa entre Trump e Biden, e preferem avançar rapidamente para o próximo ciclo presidencial, encontrando um novo candidato —qualquer que seja ele.

"Isso é o melhor que vocês podem nos dar de ambos os partidos? Vocês estão de brincadeira?", diz Josep Albanese, 49, especialista em tecnologia de Chicago que votou em Biden em 2020, mas está considerando não votar em ninguém no ano que vem.

Para pessoas que vivem na costa leste, distante da capital —eleitores mais jovens, em especial— a disfunção de Washington às vezes parece uma batalha sensacionalista em um plano paralelo. "É avassalador; há muita coisa acontecendo", diz Dionna Beamon, 28, que mora no bairro de Watts, no sul de Los Angeles. "Então, realmente, a ignorância é uma bênção."

Beamon, que é cabeleireira, afirma que ela e seus amigos estão mais preocupados com questões como saúde mental. Sua mãe morreu após um ataque cardíaco há menos de dois anos, e ela tem tido dificuldades para lidar com seu luto.

"Sinto que muitas pessoas estão deprimidas. Esse é um assunto muito frequente entre o meu grupo etário. O mundo não tem sido o mesmo depois da Covid e, quando a pandemia começou, tínhamos cerca de 20 anos."

Vivian Santos-Smith, 21, estudante do último ano da Universidade Howard em Washington D.C., afirma que sua maior preocupação era a dívida estudantil de US$ 10 mil (R$ 51,5 mil) que teria que começar a pagar após a formatura. Biden cancelou US$ 9 bilhões (cerca de R$ 46 bilhões) em dívidas estudantis esta semana, mas seus esforços mais amplos para cancelar cerca de US$ 400 bilhões (R$ 2,06 trilhões) restantes foram frustrados pela Suprema Corte.

Santos-Smith quer ser cientista política, e um de seus primeiros desafios é tentar entender esse momento. "Parece que [a série] 'House of Cards' é a realidade agora. A perspectiva é sombria."

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