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Ex-editor do Washington Post relata embates com Trump e com nova geração de jornalistas

Em livro, Martin Baron celebra resiliência do jornal e elogia Jeff Bezos, mas reforça defesa da objetividade jornalística

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São Paulo

"Nós não estamos em guerra contra o governo [de Donald Trump]. Estamos fazendo nosso trabalho", disse o então editor-executivo do jornal americano The Washington Post, Martin Baron, poucas semanas após o republicano assumir a Presidência dos Estados Unidos, em 2017.

Na época, a frase foi celebrada pela maioria dos críticos de mídia e acadêmicos americanos. Afinal, quem poderia ser contra a determinação dos jornalistas de focar o trabalho e se manter objetivo ao cobrir um novo presidente, ainda que ele fosse uma figura histriônica e dada a polêmicas?

O tempo passou e deixou claro que Trump não era simplesmente caricato. Era uma ameaça à democracia. E um número crescente de jornalistas passou a questionar os tradicionais princípios de objetividade jornalística defendidos por Baron. Para muitos, as velhas regras de contenção e equilíbrio não estavam à altura de um ataque frontal contra as instituições. Era necessário um jornalismo engajado e combativo, apontando proativamente as mentiras de Trump e defendendo a democracia de forma inequívoca.

"Colisão de Poder - Trump, Bezos, e o Washington Post", as memórias de Martin Baron recém-lançadas nos EUA, trata de três desafios simultâneos: a ameaça de um presidente populista e autoritário contra a mídia; a crise do modelo de negócios da imprensa e a compra do venerado jornal americano por Jeff Bezos, dono da Amazon; e o choque de gerações e de princípios dentro do jornalismo.

Homem branco idoso, de barba branca usando terno escuro e camisa branca, olha para a câmera, sentado em um banco.
Martin Baron, ex-editor executivo do jornal The Washington Post, posa em frente a letreiro da publicação - Justin Gellerson/NYT

Ao ler o livro, fica patente que Baron se orgulha de sua gestão à frente do Post e da resiliência do jornal diante dos ataques de Trump e da crise de rentabilidade que afeta a imprensa em geral. Mas os embates com os jornalistas mais jovens, que questionam princípios de objetividade e clamam por maior representatividade, são uma ferida que permanece aberta para Baron.

Ao assumir o Post em 2013, Baron já era um ícone da imprensa mundial. O jornalista tinha chefiado o Boston Globe, onde comandou a equipe Spotlight de jornalismo investigativo da publicação, responsável por uma série de reportagens que expuseram casos de abusos sexuais praticados por membros da Igreja Católica e as décadas de tentativas de encobri-los. As reportagens deram um Pulitzer ao jornal e viraram filme.

No Washington Post, Baron foi contratado por Katharine Weymouth, neta de Katharine Graham e sobrinha de Donald Graham. A família Graham havia estado à frente do jornal desde 1933 e tinha conduzido o diário em seus tempos gloriosos. Esse período inclui a cobertura de Watergate, escândalo que levou à renúncia do então presidente Richard Nixon, em 1974, e a publicação dos "Pentagon Papers", que revelaram desmandos do governo americano durante a Guerra do Vietnã.

Mas as finanças do jornal, que sofria com a queda de receita de publicidade em decorrência da ascensão da internet, além da redução na circulação impressa, não andavam bem. E o Post foi comprado por US$ 250 milhões pelo bilionário Jeff Bezos poucos meses após Baron assumir.

Apesar da incerteza inicial sobre as intenções de Bezos, o bilionário injetou dinheiro e tecnologia no diário, que teve um salto em circulação digital, receita e contratação de jornalistas. O Post incorporou inovações como a ferramenta Bandito, que testava manchetes e imagens para determinar quais atraíam mais os leitores, e um mecanismo que enviava emails lembrando aos repórteres o horário de fechamento de reportagens.

Bezos fez tudo isso sem jamais interferir nas decisões editoriais do jornal, como repete Baron ao longo do livro.

O ex-editor executivo também diz que não foi trivial navegar a cobertura do governo Trump, que usava o termo "inimigos do povo", parafraseando o propagandista nazista Joseph Goebbels, para descrever a imprensa. Além da hostilidade contra o jornal e os jornalistas, Trump também atacava o próprio Bezos e a Amazon, com ameaças de retaliação como consequência da cobertura crítica.

Também da esquerda vinham críticas, como as que diziam que jornais como o Post davam muito espaço para extremistas trumpistas e que estariam normalizando essas pessoas. "Nós não previmos uma candidatura Trump porque não havíamos passado tempo suficiente ouvindo pessoas que agora o viam como alguém que falava por elas. Não podíamos continuar a cometer esse erro", escreve Baron.

Com os investimentos de Bezos e a condução segura de Baron, o Post voltou a seu apogeu. Nos oito anos em que o jornalista comandou o Post, o diário conquistou dez prêmios Pulitzer e recuperou seu prestígio.

Em 2017, o diário adotou seu primeiro slogan em mais de 140 anos de história: "Na escuridão, morre a democracia". No livro, Baron revela que o slogan favorito era outro –"Um povo livre exige saber"—, mas este foi vetado pela então esposa de Bezos, MacKenzie Scott.

Baron, como outros, achava muito soturno o slogan associando o jornal a escuridão e morte. "Mas a verdade é que foi um lance magnífico de marketing, e emplacou com os leitores", diz.

Apesar de celebrar os feitos, Baron manteve-se amargo em relação aos embates que teve dentro da Redação e que levaram o jornalista a anunciar sua aposentadoria em 2021, aos 66 anos.

"Durante toda a minha carreira, era esperado que repórteres não externassem suas visões pessoais em quaisquer circunstâncias em que eles pudessem ser vistos como representando a organização", diz. "As empresas de mídia não os contrataram para mostrarem publicamente suas opiniões. Eles foram contratados para cobrir o noticiário."

Essa visão entrava em choque com a opinião dos jornalistas mais jovens, que achavam ser impossível se despir de suas opiniões e convicções ao cobrir assuntos nevrálgicos como o racismo da polícia e assédio sexual. Eles apontavam que a objetividade, historicamente, excluiu visões dos marginalizados na sociedade –mulheres, negros, latinos, indígenas e a comunidade LGBTQIA+. E os mais jovens também resistiam a seguir as regras estritas do Post para o comportamento nas redes sociais.

Segundo Baron, para essa nova geração de jornalistas, expressar-se no Twitter e em outros lugares fazia parte de como eles se definiam. "Eles viam isso como sua própria identidade" e achavam que "não devem esconder como realmente se sentem". Para o decano editor, opinar ou fazer ativismo sobre temas da cobertura compromete a credibilidade dos jornalistas e do jornal.

Um dos grandes embates foi com o repórter negro Wesley Lowery, que cobria abusos da polícia e criticava pelas redes sociais o que via como covardia de alguns veículos ao não usar a palavra racismo. Sua postura combativa levou a advertências e, no final, à saída do jornal.

Outra briga relatada por Baron foi com a repórter Felicia Sonmez, que processou o editor executivo e outros editores que a impediram de cobrir matérias sobre abusos sexuais porque ela fazia ativismo nas redes sociais sobre o assunto.

Baron continua defendendo que a objetividade jornalística não saiu de moda, nem é impossível de se atingir, ainda que todos os repórteres tenham suas opiniões. Segundo ele, a objetividade não é fazer falsa equivalência ou o chamado "dois-ladismo" nem dar voz a figuras que propagam mentiras.

A objetividade deve estar no processo jornalístico, significa que os jornalistas devem "nunca parar de se preocupar em como chegar à verdade". Ele continua, "devemos ficar mais impressionados com o que não sabemos do que com o que sabemos, ou pensamos que sabemos. Não devemos começar nosso trabalho imaginando que temos as respostas; precisamos buscá-las. Devemos ser ouvintes generosos e aprendizes ávidos. Devemos ser justos."

Segundo Baron, é necessário "apurar com rigor e não hesitar em publicar o que sabemos", mas evitar linguagem "desnecessariamente inflamatória". "Não dê munição a Trump e seus aliados contra nós. O povo americano deve decidir se quer mais trumpismo. Em uma democracia, a escolha é deles."

Fiel a sua personalidade reservada e taciturna, Baron fala muito pouco sobre si e sua vida fora do jornalismo nas páginas do livro. Mas faz um relato eletrizante da política e do jornalismo no período, narrando bastidores da cobertura de episódios cruciais, uma análise privilegiada da história recente, feita por um dos maiores jornalistas da atualidade.

Colisão de Poder - Trump, Bezos e o Washington Post

  • Preço R$ 123,99 (ebook); 548 págs.
  • Autoria Martin Baron
  • Editora Flatiron (ainda não publicado no Brasil)
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