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Vitória de Milei aumenta teste de estresse da democracia na América Latina, dizem analistas

Diversos países da região sofrem com instabilidade política, e discurso de presidente eleito leva Argentina para essa lista

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São Paulo

A vitória de Javier Milei na eleição presidencial da Argentina aumenta a sequência de sucessivos testes de estresse da democracia na América Latina, avaliam cientistas políticos ouvidos pela Folha.

"Em diversos países da região, a população tem a percepção de que a política democrática não traz resultados", diz Flávia Biroli, professora da UnB (Universidade de Brasília).

"A pobreza e a violência, por exemplo, são dois temas em uma lista de promessas não cumpridas da democracia, o que leva à frustração com os políticos tradicionais, vistos como corruptos ou incapazes de apresentar soluções para os problemas."

O presidente eleito da Argentina, Javier Milei, discursa após vencer eleição
O presidente eleito da Argentina, Javier Milei, discursa após vencer eleição - Luis Robayo - 19.nov.23/AFP

No Brasil, Jair Bolsonaro (PL) venceu em 2018 com uma plataforma abertamente contra o sistema, e Milei fez o mesmo agora na Argentina. Em ambos os casos, apostaram na retórica do "outsider", alguém que viria de fora para superar os vícios dos políticos profissionais.

Pouco importa que Bolsonaro não fosse um "outsider" de verdade; assim como sua contraparte argentina, ele se aproveitou dessa condição autoproclamada para aparecer na mídia e expor visões que antes não eram consideradas legítimas.

"Os dois foram sendo normalizados. Por exemplo, a contestação da gravidade dos crimes da ditadura era impensável", afirma Biroli, para quem o problema não está em ampliar o leque de pontos de vista no debate público.

"É preciso diferenciar o que é alternância de posições políticas e ideológicas, de um lado, e o que são posições que atentam contra a própria possibilidade de manutenção da ordem democrática, de outro."

Ela observa que, em seu primeiro discurso depois de eleito, Milei declarou que não iria inventar coisa alguma, e sim repetir o que a história mostrou que funciona; como exemplo, ele citou a Argentina do século 19. Para a professora da UnB, nada mais simbólico.

"É a promessa de retorno a uma ordem social que se pode projetar como grandiosa, mas é uma ordem em que não há direitos humanos, não há igualdade de gênero, a cidadania é restrita. É uma ordem pré-democrática."

A ordem que ele propõe é também quase pré-Estado. Autodefinido como anarcocapitalista, ele prega uma versão extrema do liberalismo econômico, com a desregulamentação total e a privatização de tudo.

De acordo com Guilherme Casarões, professor da Escola de Administração de Empresas da FGV-SP, essa característica distingue Milei de outros líderes do campo da direita na América Latina.

"Mas a maneira pela qual Milei promete entregar esse mundo é profundamente autoritária, e nisso ele se aproxima da outros políticos da extrema direita. Ele não está falando em fazer reformas, mas em destruir as bases do Estado argentino na paulada, na motosserra."

Segundo Casarões, o autoritarismo dessa atitude está em imaginar que a vitória das urnas dá legitimidade para fazer o que bem quiser com seu país, quando, na realidade, ele precisará negociar com as instituições e com os demais Poderes.

Dono de um discurso contundente, Milei tem sido celebrado não só por Bolsonaro mas também por Donald Trump, entre outros políticos que enxergam no êxito argentino um novo impulso para a onda da direita na América Latina.

"A onda de direita é bastante forte no mundo desde pelo menos a eleição de Trump em 2016", diz Casarões. "Mas, na América Latina, e na América do Sul em particular, existe não exatamente uma onda de extrema direita, mas uma onda anti-incumbente."

Ou seja, na região, há um fracasso constante de presidentes que disputaram a reeleição ou tentaram fazer um sucessor nos últimos anos. Além de Argentina e Brasil, também passaram por isso Chile, Uruguai, Colômbia, Equador, Peru e México, entre outros.

Em muitos desses casos, a vitória ocorreu por margem apertada, propiciando questionamentos de resultado –por vezes com base em teorias conspiratórias— ou estimulando algum grau de animosidade entre Poderes.

"A democracia se baseia na confiança no processo e no funcionamento das instituições. Essa troca permanente de chefia dos governos testa as instituições, porque esses líderes tendem a chegar com minoria legislativa e tensionam a relação com os demais Poderes", diz o professor da FGV.

Se é verdade que Milei não ganhou por pouco, ele o fez com promessas radicais e sem maioria no Legislativo para dar apoio a seus planos.

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