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Justiça ainda não alcança criminosos de guerra em Israel e Gaza

Soluções são imperfeitas, insuficientes e tendenciosas; não há perspectiva de resposta à altura da realidade

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João Paulo Charleaux

Jornalista e autor de “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História”, trabalhou no Comitê Internacional da Cruz Vermelha

O conflito entre Israel e o Hamas daria uma enciclopédia inteira de crimes de guerra. De A a Z, quase todos os verbetes estão cobertos: dos ataques indiscriminados contra civis até as zonas de deslocamento populacional forçado, passando pela destruição de ambulâncias, hospitais, locais de culto e residência, violência sexual, sequestros de civis, tortura e, mais recentemente, a morte de pessoas que portavam bandeiras brancas, símbolo protegido pelo direito internacional.

Homem ferido em cama de hospital na cidade de Rafah, no sul de Gaza, lamenta morte do filho, cujo corpo está envolvo em lençol branco após bombardeio na faixa palestina
Homem ferido em cama de hospital na cidade de Rafah, no sul de Gaza, lamenta morte do filho, cujo corpo está envolvo em lençol branco após bombardeio na faixa palestina - Mohammed Abed/AFP

Existem pelo menos quatro caminhos para o julgamento dessas violações, mas todos dependem de uma conjuntura política favorável –algo raro em quase todos os conflitos recentes que envolvem grandes potências e seus aliados. Os poucos casos exitosos de responsabilização por crimes de guerra e crimes contra humanidade são mais ligados a países de menor expressão política, sobretudo no continente africano.

Por que, então, falar em julgamento de crimes de guerra se eles são raros? Porque avançar nessa direção continua sendo uma das poucas esperanças de, um dia, conseguir aumentar o custo das violações, a ponto de desencorajar comandantes militares e autoridades políticas de tomarem decisões criminosas.

O primeiro caminho para julgar crimes como os que acontecem em Gaza e Israel é a própria justiça nacional. Tanto o lado palestino quanto o lado israelense possuem sistemas legais capazes de processar as violações cometidas por seus próprios cidadãos.

No direito, a primazia do julgamento é sempre do próprio Estado nacional, que pode usar tanto cortes marciais quanto tribunais civis para responsabilizar os próprios combatentes e políticos. Por que um tribunal de Tel Aviv condenaria um general israelense? Porque é obrigação dos tribunais aplicar a lei.

Caso um Estado não possa –porque foi destruído, por exemplo– ou não queira fazer esse julgamento, entram em cena as possibilidades internacionais. A mais conhecida delas é o TPI (Tribunal Penal Internacional), sediado em Haia, na Holanda, e criado para julgar pessoas, não países.

A Palestina aderiu ao Estatuto de Roma, reconhecendo com isso a jurisdição do TPI sobre seus cidadãos. Então, membros do Hamas que não forem julgados em território palestino pelas autoridades locais podem ser levados ao TPI.

Israel não aderiu ao Estatuto de Roma, mas seus cidadãos ainda assim podem ser julgados se o crime for cometido no território de um Estado-parte do Estatuto, como é o caso de Gaza, ou se um cidadão israelense que tenha sido condenado pelo TPI viajar um dia para um Estado que reconheça a jurisdição dessa corte. Exemplo: Brasil.

Para que o TPI se ocupe dos crimes cometidos neste conflito, é preciso que o atual procurador-chefe, Karim Ahmad Khan, realize um exame de admissibilidade da situação e apresente as denúncias.

A última vez que o TPI tentou fazer isso contra uma grande potência não deu certo. Em 2019, a então procuradora, a gambiana Fatou Bensouda, disse haver "base razoável" para atribuir pelo menos o crime de tortura a militares americanos que atuaram em prisões no Afeganistão de 2003 a 2004. Em resposta, os EUA proibiram Bensouda de entrar no país e ameaçaram impor sanções contra quem embarcasse na história. O assunto morreu.

Os demais caminhos para a responsabilização internacional não são mais fáceis ou desimpedidos que o TPI. O Conselho de Segurança das Nações Unidas teria o poder para instituir um tribunal ad hoc, criado especificamente para julgar crimes contra a humanidade ocorridos em Gaza e Israel. Há precedentes, como nos casos de Ruanda, Serra Leoa, ex-Iugoslávia, Camboja e Líbano. Mas, novamente, o caminho seria bloqueado pelos EUA, que, como potência com assento permanente no Conselho de Segurança e aliado de Israel, têm poder de veto e interesse em exercê-lo.

Restaria uma quarta alternativa, radical: o princípio da jurisdição universal, segundo o qual alguns crimes são tão graves, tão extensivos e agridem tanto a própria noção de humanidade que podem ser julgados por qualquer tribunal do mundo, a qualquer momento.

Difícil, neste caso, é conseguir um país que tenha recursos, tempo e interesse em fazê-lo, além de não temer retaliações. Sem contar o fato de que há a dificuldade prática de realizar investigações, levantar provas, ouvir testemunhas e fazer cumprir a sentença em território distante e hostil.

Não existe um tribunal mundial, nem uma polícia mundial. Não há instâncias que possam simplesmente cruzar fronteiras, pegar pessoas, levá-las a uma corte e colocá-las na prisão. Uma estrutura com todo esse poder nem sequer seria desejável. Quem duvida que dê uma olhada nos problemas dos sistemas penais e prisionais domésticos.

As soluções disponíveis são imperfeitas, insuficientes e tendenciosas. Não há perspectiva de uma Justiça à altura das necessidades que a realidade impõe.

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