Descrição de chapéu

Eugênio Bucci: Alberto Dines, ou a elegância laica

Ele reunia erudição a um apurado faro de notícia

São Paulo

Na morte, a imprensa foi generosa com Alberto Dines. Ele faleceu na última terça (22), aos 86 anos, e foi sepultado no dia seguinte. Os maiores e mais respeitados veículos jornalísticos do Brasil reservaram para ele um obituário de respeito, em espaço e qualidade. Relembraram os fatos que o tornaram célebre, como a resistência perspicaz, quase zombeteira, com que ele enfrentou a censura nos tempos do Jornal do Brasil, entre os anos 1960 e 1970.


A história de fato é muito boa. Dines vinha renovando o JB —na pauta, no texto e nas artes gráficas— quando foi confrontado pela saraivada de interditos da ditadura. Com criatividade travessa, soube driblar alguns deles. No dia seguinte à decretação do AI-5, em 1968, publicou previsões do tempo sombrias para a cidade de Brasília. Por ocasião do golpe militar de Pinochet, no Chile, em 1973, os censores brasileiros se anteciparam e impediram qualquer manchete sobre o assunto. O JB encontrou a saída. Deu uma extensa reportagem, ocupando toda a primeira página, sem título nenhum, sem manchete, numa capa que entrou para a história.


Por essas e outras, a cobertura que ele mereceu foi ampla e justa. Dines reunia enorme erudição, sem nenhum pedantismo, a um faro de notícia muito apurado. Tinha de sobra esse dom que é difícil de explicar. Só quem o tem em escassez, como eu, consegue reconhecê-lo e valorizá-lo. Os que não o têm não o enxergam, e os que o têm em excesso acham que se trata de uma coisa corriqueira, que todo mundo traz no DNA.


Dines era um esteta (uma pitada de vocação artística é indispensável ao jornalista) e tinha aguda sensibilidade política (outra virtude obrigatória na profissão). Sempre usou sua antena política a favor da notícia. Às vezes, é verdade, usou-a contra si mesmo. Em 1975, quando resolveu fazer sua coluna de crítica da imprensa nesta Folha (“Jornal dos Jornais”), ouviu do publisher Octavio Frias de Oliveira que esse negócio de criticar a mídia só lhe renderia inimigos. Dines insistiu, fez sua coluna e, claro, arranjou inimigos.


Na semana que passou, a imprensa também falou de sua face de educador. Promotor de estudos do jornalismo (como nos célebres “Cadernos de Jornalismo” do JB), ele se saía muito bem à frente de uma sala de aula. Isso sem ter diploma universitário, como alertava periodicamente. Entre 2011 e 2013, foi titular da disciplina “História do Jornalismo” no Curso de Pós-Graduação em Jornalismo na ESPM. Entrava em classe mostrando uma miniatura da prensa de Gutenberg: “Foi aqui que tudo começou”. Numa dessas, eu o atalhei: “E o Alberto Dines já estava lá”.


Creio que faltou falar um pouco sobre o vigor de suas convicções laicas. Generoso no trato, era charmoso mesmo quando assertivo. Encantava. Dava risada como um galã, apesar da extravagância das cores das camisas que vestia no “Observatório da Imprensa”. Quase nada o tirava do sério, a não ser a interferência religiosa em assuntos de imprensa. Assim como não gostava de censores, não gostava de santos na redação. Em seu livro “Vínculos de Fogo”, mostrou a torpeza da Santa Inquisição. Não rejeitava o lugar das igrejas na sociedade, mas não aceitava que o pensamento e o jornalismo fossem catequizados por divindades ou fanatismos. A causa da laicidade, que manteve acesa ao longo de toda a carreira, ajudou a torná-lo um jornalista tão notável, mestre do ceticismo sem cinismo.


Estávamos descontraídos no dia de seu funeral. Serenos e orgulhosos. Alberto Dines teve uma bela vida, foi um grande homem. Seu exemplo nos ensina a altivez. Sua presença nos previne contra a arrogância —e nos faz mais fortes.
 

Jornalista, professor da ECA-USP

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