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José Paulo Cavalcanti Filho: Contra a revisão da anistia

Mantenho a posição divergente que tive na Comissão Nacional da Verdade

O advogado José Paulo Cavalcanti Filho, ao lado da mulher, Maria Leticia, na Casa Folha em Paraty, em 2017
O advogado José Paulo Cavalcanti Filho, ao lado da mulher, Maria Leticia, na Casa Folha em Paraty, em 2017 - Marcus Leoni - 28.jul.17/Folhapress

A anistia, entre nós, veio em dois momentos. O primeiro, com a lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, negociada entre Petrônio Portela (ministro da Justiça de Ernesto Geisel) e Raymundo Faoro (presidente da OAB Nacional). De um lado, preparando a volta de exilados como Miguel Arraes e Leonel Brizola —e protegendo condenados ou processados pela ditadura; de outro, protegendo os militares por tudo o que fizeram.

Duro preço a pagar para permitir a transição. Uma lei imposta pelos militares, claramente, para se proteger. Vão-se os anéis.

Mas houve outra, depois, da qual pouco se diz. A Emenda Constitucional 26, de 27 de novembro de 1985, votada por um Congresso livre, o mesmo que elegeu Tancredo Neves.

A reprodução do texto, tecnicamente o mesmo, se deveu ao fato de que o episódio grotesco do Riocentro ocorreu em 1981, posteriormente à primeira lei. Os militares exigiam que também aquele episódio fosse coberto por uma anistia. 

E tudo se deu no contexto de negociações feitas por Tancredo, antes da posse, para garantir uma transição sem maiores traumas. Dos militares para a oposição civil —e não, como na generalidade dos países, primeiro dos militares para o estamento civil do sistema.

Agora, surgem novas evidências do comprometimento das Forças Armadas, com a publicação de mais alguns documentos norte-americanos. Confirmando os indícios e as provas que nos levaram, na Comissão Nacional da Verdade, a indicar 380 autoridades como responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos forçados no Brasil.

Entre eles, os presidentes Geisel e Figueiredo —autoridades que, comprovam também os documentos de agora, ordenaram a matança do Araguaia, no curso da operação que teve o sugestivo nome de Limpeza. Limpeza de gente.

O episódio traz de volta o debate sobre a revisão da lei da anistia. Assim se diz, no singular. Das leis, se deveria dizer, por serem duas. Enfim... Essa ideia, sobre conceder ou não anistia, nos outros países se deu logo depois da transição, com o sentido de garantir que pudessem ir, aos poucos, se reconciliando.

Todas as 40 Comissões de Verdade e Conciliação anteriores à brasileira funcionam entre seis e 18 meses após o fim de ditaduras, preparando a redemocratização. A nossa (41ª), criada 30 anos depois da transição, foi diferente. Seu objetivo era, sobretudo, repor a Verdade histórica.

Por aqui, foi diferente. Bem ou mal, a transição estava já feita. Em 1964, 92% dos brasileiros de hoje haviam nascido, convertendo esse problema em algo do passado. Não se conhece, presentemente, algum responsável por torturas e mortes. É possível até que haja, mas ninguém importante. Só pessoal de graduação inferior. E todos, hoje, perto dos cem anos. Já sofrendo com artrites, escleroses ou cânceres.

Sem contar que a revisão da anistia traz problemas jurídicos severos, muito difíceis de superar. Até porque a questão já transitou no Supremo. 

Por isso votei, na Comissão Nacional da Verdade, em posição divergente dos outros cinco membros. Contra a revisão da anistia —"pelas mesmas razões que, em 29 de abril de 2010, levaram o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, e com fundamento em cláusulas pétreas da Constituição brasileira, a recusar, por larga maioria (sete votos a dois), essa tese" (pág. 965 do Relatório Final).
 
Com absoluta tranquilidade de espírito, ainda penso assim, devendo ter sequência os trabalhos na busca da Verdade. Em respeito a tantos --indicamos 435 vítimas, com suas biografias e fotos, no relatório final —que foram torturados, mortos ou estão desaparecidos. Em respeito a seus martírios. A suas vidas. A suas memórias. E à democracia.

José Paulo Cavalcanti Filho

Advogado no Recife e ex-membro da Comissão Nacional da Verdade

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