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Bruno Quintela

Como nossos pais

A certeza ameniza o sofrer; a impunidade, só revolta

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O jornalista Tim Lopes, 51, da Rede Globo, assassinado por traficantes, em 2002, quando fazia uma reportagem sobre baile funk em uma favela do Rio de Janeiro - Reprodução/Agência O Globo
Bruno Quintela

Quando o presidente da República revolve o fundo das lembranças particulares do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz —como estratégia injustificável de atingir a ordem—, a ofensa se estende a todo filho ou filha que não tenha conhecido o pai.

Ou convivido pouco. Em especial a quem teve uma perda familiar violenta, repentina, traumática. Como Marcelo Rubens Paiva. Como Ivo Herzog. O comentário infeliz reverbera dolorosamente em datas como a deste domingo (11), porém não chega a atingir a dignidade de Fernando (pai de Santa Cruz) ou até mesmo a de Evaldo Santos, o músico assassinado pelo Exército —ou Luciano Macedo, o catador de papel também morto pelos militares há quatro meses. Santos deixou filhos; a viúva de Macedo estava grávida. Seria possível explicar para essas famílias por que vão passar o primeiro Dia dos Pais sozinhas enquanto os algozes dos seus estão em casa com os filhos?

O assassinato de Tim Lopes. Uma semana de angústia sem saber, mas a pressentir que o pior poderia ter acontecido. Um jornalista a serviço da notícia. Capturado, espancado, torturado, julgado por um tribunal do tráfico; incinerado numa pilha de pneus em chamas. Esquartejado. Restos mortais enterrados no alto de uma favela. No entanto, um exame de DNA e a confirmação no laboratório da UFRJ foram, juntos, a minha comissão da verdade: era o meu pai. A família de Santa Cruz não teve esse “privilégio”.

O Estado não matou Fernando Santa Cruz nem Tim Lopes. Mas a ausência de sua representação legítima, essa sim, matou.

Governo Médici. Um militante do movimento estudantil desaparece. Seu assassinato, hoje documentado, foi consumado por agentes do Dops, órgão repressor da ditadura militar. O corpo de Santa Cruz foi incinerado num forno de uma usina de açúcar em Campos dos Goytacazes (RJ). A informação foi confirmada, no fim de julho, pelo Ministério Público Federal, de acordo com depoimento de um ex-delegado do Dops. Outros dez corpos foram queimados ali entre 1974 e 1975.

Governo FHC. Um repórter desaparece durante uma reportagem. Sua execução foi consumada por traficantes facínoras, no maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, o Complexo do Alemão, numa histórica e latente ausência do poder público naquela área. Outras ossadas foram localizadas durante as buscas pelo corpo do jornalista.

Foi a partir de denúncias que acabaram por sacrificar a vida dos filhos que dona Elzita, mãe de Fernando, e dona Maria do Carmo, minha avó, descobriram existir um poder obscuro distante do regozijo e do conforto do lar de muitos jovens militantes —e de repórteres consagrados. (Re)abriram feridas antigas. 
Minha avó morreu há seis anos, mas com a certeza de que a costela colocada no caixão, somada a um pedaço de pedra para fazer o peso necessário, era a de meu pai.
 
Já dona Elzita, que descansou há algumas semanas, nunca teve esse alívio. Um velório, um enterro, uma passagem. Nenhuma mãe merece a dúvida. A certeza, por mais dolorosa que seja, ameniza o sofrimento. A impunidade, essa só causa revolta.

Aliás, falta menos de uma semana para Jair Bolsonaro justificar suas palavras cruéis ao presidente da OAB no STF (Supremo Tribunal Federal). Mas só se quiser, claro.

Feliz Dia dos Pais.

Bruno Quintela

Jornalista, filho de Tim Lopes e roteirista do documentário ‘Tim Lopes - Histórias de Arcanjo’

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