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Monique Rodrigues do Prado

A doutora da pele preta

No fórum, confunde-se cliente branca com advogada

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Não é incomum eu escutar que não pareço uma advogada. Nos primeiros anos de advocacia, acreditava que isso tinha relação com a aparência ainda juvenil, mas com o tempo fui levada a refletir sobre como as relações sociais são construídas e, inevitavelmente, me deparei com a questão étnico-racial.

Em 2015, graduada aos 23 anos em direito, não tinha a real dimensão de como direito e medicina continuavam no imaginário das pessoas como algo distante e “elitizado”, de forma que o impacto imediato é a leitura desses profissionais como detentores de status social ligado à riqueza. E é exatamente a partir desse senso comum que decorre a intersecção entre classe social e etnia.

Monique Rodrigues do Prado - Advogada, integrante do corpo de advogados voluntários da Educafro, cofundadora do Afronta Coletivo e participante do Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil
A advogada Monique Rodrigues do Prado, cofundadora do Afronta Coletivo - Divulgação

Não podemos esquecer que a cordialidade foi instrumento indulgente que ocultou por muito tempo a desigualdade racial, onde a empregada doméstica e o caseiro, geralmente negros, poderiam tranquilamente serem chamados como “pertencentes da casa” ou “quase da família”, desde que não agissem como tal —ou seja, era de bom tom que ficassem circunscritos à serventia, com acesso apenas aos fundos da casa. Reflexão traçada brilhantemente no filme “Que horas ela volta?”.

Na mesma linha, a prática discriminatória adentra as grandes corporações e escritórios de advocacia. Exemplo disso foi demonstrado num teste de imagem realizado com profissionais de recursos humanos feito no estado do Paraná.

Na fase um de análise foram apresentadas aos recrutadores seis fotos sem identificações de nome, idade ou origem, apenas tendo em comum a pele branca: 1 - um jovem correndo; 2 - uma moça segurando um casaco; 3 - um homem de terno; 4 - um rapaz cuidando do jardim; 5 - uma mulher limpando a pia; e 6 - uma garota segurando na mão uma tinta spray. Na segunda fase foi apresentado o mesmo conceito de fotos, mas com pessoas negras.

O procedimento e a pergunta realizada nas duas etapas foram de igual forma. As imagens eram mostradas individualmente e, em seguida, o entrevistador perguntava aos recrutadores o que viam na foto. Ao jovem branco correndo foi dito que ele estava atrasado, enquanto ao negro que ele era bandido. A moça segurando um casaco foi vista como designer de moda; já a negra, costureira. O homem branco de terno parecia um executivo; o negro foi apontado como segurança. Sobre o rapaz caucasiano cuidando do jardim, disseram ser o proprietário da casa; o negro, jardineiro. A mulher branca limpando a pia era a proprietária, enquanto a negra, empregada. Por fim, a garota branca era apenas uma grafiteira; já a negra foi considerada uma pichadora.

De fato, não diferem em nada de situações das quais já passei, como estar no fórum acompanhada de uma cliente caucasiana e o escrevente dirigir-se a ela como se fosse a advogada. Ou quando eu estava com uma colega advogada caucasiana em uma reunião externa com diretores de um potencial cliente. Na mesa, eu era a única que detinha o conhecimento jurídico da matéria; entretanto, todos reportavam-se exclusivamente a ela.

É claro que o audiovisual e a publicidade contribuem violentamente para esse cenário, criando quase que um processo pedagógico que delimita a etnicorracialidade das pessoas, capitaneando o imaginário da sociedade de forma a criar uma identidade posta como o retrato social modelo, o que acaba por causar espanto quando alguém se depara com uma pessoa negra na condição de médico, engenheiro, juiz ou arquiteto.

Não há dúvida de que essa normatividade é perversa, principalmente porque, ao se debruçar sobre a temática, é possível observar que não se trata de algo inofensivo, moderado e despretensioso, ao contrário. A ausência de um olhar crítico e antirracista sobre o tema tem efeito real na vida da população negra, já que em menor ou maior grau desaprova profissionais em entrevistas de emprego, fomenta as batidas policiais e cria obstáculos para a ascensão social dessa população.

Meu convite é para que você não naturalize o olhar. Seja crítico, observe, questione e acima de tudo participe desse processo de desmistificação do status quo.

Monique Rodrigues do Prado

Advogada e integrante do corpo de advogados voluntários da Educafro e da Comissão de Direitos Humanos da OAB (subseção Osasco), é cofundadora do Afronta Coletivo e participante do Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil

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