Descrição de chapéu
Luiza Pastor

A palavra é exasperação

Jair Bolsonaro realmente crê ser ungido por um poder ilimitado

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Ante as inúmeras barbaridades diárias que o cidadão Jair Bolsonaro, alçado a um cargo para o qual nunca teve o menor preparo, comete contra aqueles que deveria presidir, a palavra que martela o cérebro é exasperação.

É exasperante ver que alguém se mantém no poder sendo tão incompetente. Sim, porque até para ser mau, ser ditador, ser fascista, é preciso saber agradar aos seus pares. Bolsonaro não apenas não sabe, como não quer saber. Na prática, ele não tem pares, é um paranoico obcecado, sem amigos, só familiares e um entorno de aproveitadores e acólitos de última categoria que não têm compromisso com nada além de suas próprias agendas medíocres. Ver como se agacham para catar as migalhas que seu líder deixa pelo caminho é, de novo, exasperante.

Detalhe de partículas de saliva expelidas pelo presidente Jair Bolsonaro ao deixar o Palácio da Alvorada, em Brasília - Joédson Alves 27.mar.20/EFE

Assim como é exasperante assistir ao tropicar atabalhoado de quem realmente crê ser ungido por um poder ilimitado, enquanto desfila seu messianismo pelo Planalto como o rei cuja nudez seus cortesãos fingiam ignorar. Ele não percebe, pois lhe falta cognição e conselheiros sinceros, que a cada contradição cuspida de seu quadrado desencanta a galope um número maior dos que se iludiram um dia com o que pensavam ser autenticidade e apoio à luta contra a corrupção e que, na prática, começam a ver o que sempre esteve lá: o discurso vazio de um baixo clero medíocre, que encontrou uma brecha para incensar o que de pior tem dentro de si o ser humano aviltado, envergonhado, preconceituoso e infeliz.

Porque é exasperante ver que esse é o eleitorado que o elegeu, com o fígado e à revelia de qualquer raciocínio: o lúmpen que não evoluiu, que nada aprendeu da história, porque o saber humilha seu orgulho de tanto ignorar; o feitor que suspira a nostalgia da escravidão disfarçada de quarto de empregada; o empresário medíocre que não enxerga um palmo à frente do nariz e se inspira nas práticas da pré-Revolução Industrial; a mulherzinha bela-recatada-e-do-lar conformada à vida engessada em conceitos medievais.

A esses, como a outros seres rastejantes, baratas enfatiotadas, só resta defender com unhas de gel e dentes cuidadosamente polidos nos consultórios de luxo o ídolo que lhes devolveu a possibilidade de serem trogloditas à luz do dia. Para eles, o ser abjeto é o mito, só ele os salvará do opróbrio do século 21.

Pois é sim, também exasperante, observar de fora as tentativas de demonstrar euforia da claque que rodeia esse personagem tão ruim, indigno do pior folhetim. As festas regadas a falsa alegria, pretextos para selfies nas redes sociais, o desafio à ralé cuspido pelos novos-ricos milicianos e suas loiras tingidas, botocadas, moldadas nas academias e nos bisturis dos médicos da moda.

Porque não basta ser um perfeito idiota, tem que ostentar sua idiotice em hashtags de mau gosto e bebidas contrabandeadas pelos milicianos da vizinhança. Têm que esfregar sua ilusão de tudo poder na cara dos que menos ou nada possuem. Porque esses são os supérfluos, os descartáveis, como as garrafas long neck que vão largando pelo chão e os vírus mortais que distribuem à mancheia. De onde vieram esses servir aos senhores que se creem todo-poderosos, há todo um exército de mortos de fome à espera de uma boquinha.

O velho, ranheta e brilhante jornalista Paulo Francis dizia que a ditadura militar instaurada pelo golpe de 1964 só durou duas décadas por causa da distância de Brasília dos principais centros do país. “Se a capital continuasse no Rio”, afirmava, “duvido que o regime resistisse dez anos". Em Brasília, no chamado forte apache, o isolamento em que alguns militares, tipo general Frota, viveram deve tê-los feito ver demônios, que, na sede do 1º Exército do Rio, assustariam tanto como Pluft, o fantasminha, e seriam ridicularizados amavelmente por amigos civis.

A incestuosidade burocrática de Brasília é um dos nossos maiores problemas”. A observação de Francis se aplica perfeitamente aos dias de hoje, com um ligeiro acréscimo geográfico: se a república condominial da Barra da Tijuca não tivesse sido ignorada pelas prefeituras cariocas como uma zona de emergentes em busca de reconhecimento, rodeada de especialistas em crime organizado com PhD na bandidagem dos morros que a circulam, capazes de implantar e fazer cumprir suas próprias leis, não teríamos hoje que nos preocupar com seres malignos tratados por números sempre iniciados por um sintomático zero à esquerda.

A serpente talvez, e só talvez, estaria ainda dentro do seu ovo, esperando pelo melhor momento da eclodir.

Luiza Pastor

Jornalista, editora da newsletter FolhaMercado

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