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Rubens Naves

Novo marco do saneamento: a urgência de acertar

Demasiadamente privatista, projeto não traz respostas diante dos novos tempos

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Universalizar o saneamento básico é uma urgência de primeira grandeza no Brasil. A atual realidade, com cerca de 35 milhões de pessoas sem abastecimento de água tratada, quase 100 milhões sem coleta de esgoto e com menos da metade dos esgotos tratados, é um atentado à saúde e à dignidade humana, ao meio ambiente e a qualquer projeto consistente de desenvolvimento nacional. A tarefa de levar serviços de abastecimento de água e saneamento a toda a população precisa ser reconhecida e assumida como prioritária por Estado, governos, sociedade civil e toda a cidadania. E já!

Essa constatação não obriga o apoio a qualquer projeto legislativo que se apresente como solução para o desafio de acelerar a universalização do saneamento. Como sabemos, não é raro que uma pretensa solução não apenas deixe de cumprir o que promete como até dificulte a resolução do problema. No caso do projeto que hoje se propõe a instituir um novo marco do saneamento, tanto os riscos de ineficácia quanto de deterioração de partes saudáveis do setor, que hoje funcionam bem, são grandes.

O advogado Rubens Naves, conselheiro e fundador da Transparência Brasil - Zanone Fraissat - 31.mai.19/Folhapress

Os riscos implicados no projeto decorrem de duas razões gerais e várias outras, mais específicas.

O projeto se baseia numa visão excessivamente privatizante que se apresentava como inovadora e promissora nas décadas de 1980 e 1990, mas já vinha se mostrando pouco realista. Constatação especialmente válida para serviços que atendem a direitos humanos e sociais básicos, demandam coordenação de várias instâncias do poder público, planejamento o investimento a longo prazo e limitações intrínsecas à livre concorrência.

O segundo problema genérico do projeto do novo marco, que agrava o seu demasiado privatismo, é a ausência de compreensão e de respostas diante das novas realidades ao mesmo tempo reveladas e produzidas pela pandemia de Covid-19. A atitude dos propositores e apoiadores do projeto em face do que o mundo já enxerga como “o novo normal” tem imitado o estilo da icônica trinca de macaquinhos que tampam olhos, ouvidos e boca. Enquanto o consenso mundial vai na direção do reconhecimento da necessidade de resgate do papel do Estado e dos poderes públicos como promotores do bem comum, sobretudo em relação a setores e serviços que impactam a saúde das populações, o projeto, em sua essência, se mantém firme na contramão, apostando numa crença “mercadista” ilusória.

Uma vez aprovado o projeto, a dissintonia entre a excessiva aposta nas forças de mercado que o rege e a realidade contemporânea não demorará para se evidenciar. Inclusive pela insuficiência de recursos privados para o cumprimento das promessas de acelerada e sustentável expansão dos serviços que o projeto faz à sociedade brasileira. Para cumpri-las será preciso aportar conhecimento econômico e visão sistêmica de modo a instituir instrumentos como um novo e bem desenhado fundo público de financiamento.

Uma análise dos problemas mais específicos do projeto do Novo Marco do Saneamento não cabe neste espaço, mas alguns podem e devem ser pontuados.

O projeto expressa uma compreensão inadequada da natureza do desafio do saneamento básico ao privilegiar a coordenação centralizada na instância federal e a gestão municipal, em detrimento do plano regional, que, pelas características socioambiental, geográfica e infraestrutural do serviço, é sua dimensão mais importante, com forte embasamento constitucional.

O aperfeiçoamento do setor do saneamento visando à necessária universalização precisa incluir a promoção e qualificação instrumentos e agentes de regulação. Mas a resposta que o atual projeto provê nesse sentido é refém de outra visão antiquada: o incremento de pesadas instituições burocráticas —como uma “superANA” (Agência Nacional de Águas acrescida de funções, responsabilidades, estruturas e pessoal). Bem melhor seria enfatizar um novo arranjo, leve e flexível, ao estilo dos comitês, que provesse sinergia a entidades e instâncias já existentes, uma vez que estamos falando de normas referenciais.

Incentivar o aumento da competitividade e da inovação é imprescindível. Mas o atual projeto também não expressa compreensão de que, no setor do saneamento, isso não decorre da natureza jurídica do titular do serviço. Há empresas de todos os tipos —públicas, privadas e de economia mista— com bom, mediano e mau desempenho. O que pode garantir a eficiência são muito mais o fortalecimento de experiências bem-sucedidas, e sistemas de regulação e controle estratégicos e eficientes, norteados pelas necessidades sociais mais amplas. Também requer o aprimoramento dos sistemas concorrenciais e contratuais ao longo da prestação dos serviços, que são prestados por meio de uma multiplicidade de fornecedores atuando em parcerias.

Neste momento em que o Brasil demanda, com crescente urgência, mais e melhor saneamento básico e impulsos sustentáveis para retomada da atividade econômica, o novo marco do saneamento pode ser um fator chave de avanço e desenvolvimento. A aprovação e implementação de um projeto que se mostra fundamentalmente equivocado e inconsistente diante do desafio real que hoje se apresenta não dará conta dessa tarefa. E pode agravar o problema.

O que está a demandar regime de urgência por parte dos nossos parlamentares é, antes de tudo, que retirem as mãos da frente dos olhos e encarem com coragem a nova realidade do mundo e do país. Só assim poderão apresentar à sociedade brasileira respostas à altura das necessidades que urgem neste momento decisivo.

Rubens Naves

Advogado, é autor de “Saneamento para Todos” (ed. Palavra Livre) e “Água, Crise e Conflito em São Paulo” (ed. Via Impressa); professor aposentado de Teoria Geral do Estado (PUC-SP)

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