Universalizar o saneamento básico é uma urgência de primeira grandeza no Brasil. A atual realidade, com cerca de 35 milhões de pessoas sem abastecimento de água tratada, quase 100 milhões sem coleta de esgoto e com menos da metade dos esgotos tratados, é um atentado à saúde e à dignidade humana, ao meio ambiente e a qualquer projeto consistente de desenvolvimento nacional. A tarefa de levar serviços de abastecimento de água e saneamento a toda a população precisa ser reconhecida e assumida como prioritária por Estado, governos, sociedade civil e toda a cidadania. E já!
Essa constatação não obriga o apoio a qualquer projeto legislativo que se apresente como solução para o desafio de acelerar a universalização do saneamento. Como sabemos, não é raro que uma pretensa solução não apenas deixe de cumprir o que promete como até dificulte a resolução do problema. No caso do projeto que hoje se propõe a instituir um novo marco do saneamento, tanto os riscos de ineficácia quanto de deterioração de partes saudáveis do setor, que hoje funcionam bem, são grandes.
Os riscos implicados no projeto decorrem de duas razões gerais e várias outras, mais específicas.
O projeto se baseia numa visão excessivamente privatizante que se apresentava como inovadora e promissora nas décadas de 1980 e 1990, mas já vinha se mostrando pouco realista. Constatação especialmente válida para serviços que atendem a direitos humanos e sociais básicos, demandam coordenação de várias instâncias do poder público, planejamento o investimento a longo prazo e limitações intrínsecas à livre concorrência.
O segundo problema genérico do projeto do novo marco, que agrava o seu demasiado privatismo, é a ausência de compreensão e de respostas diante das novas realidades ao mesmo tempo reveladas e produzidas pela pandemia de Covid-19. A atitude dos propositores e apoiadores do projeto em face do que o mundo já enxerga como “o novo normal” tem imitado o estilo da icônica trinca de macaquinhos que tampam olhos, ouvidos e boca. Enquanto o consenso mundial vai na direção do reconhecimento da necessidade de resgate do papel do Estado e dos poderes públicos como promotores do bem comum, sobretudo em relação a setores e serviços que impactam a saúde das populações, o projeto, em sua essência, se mantém firme na contramão, apostando numa crença “mercadista” ilusória.
Uma vez aprovado o projeto, a dissintonia entre a excessiva aposta nas forças de mercado que o rege e a realidade contemporânea não demorará para se evidenciar. Inclusive pela insuficiência de recursos privados para o cumprimento das promessas de acelerada e sustentável expansão dos serviços que o projeto faz à sociedade brasileira. Para cumpri-las será preciso aportar conhecimento econômico e visão sistêmica de modo a instituir instrumentos como um novo e bem desenhado fundo público de financiamento.
Uma análise dos problemas mais específicos do projeto do Novo Marco do Saneamento não cabe neste espaço, mas alguns podem e devem ser pontuados.
O projeto expressa uma compreensão inadequada da natureza do desafio do saneamento básico ao privilegiar a coordenação centralizada na instância federal e a gestão municipal, em detrimento do plano regional, que, pelas características socioambiental, geográfica e infraestrutural do serviço, é sua dimensão mais importante, com forte embasamento constitucional.
O aperfeiçoamento do setor do saneamento visando à necessária universalização precisa incluir a promoção e qualificação instrumentos e agentes de regulação. Mas a resposta que o atual projeto provê nesse sentido é refém de outra visão antiquada: o incremento de pesadas instituições burocráticas —como uma “superANA” (Agência Nacional de Águas acrescida de funções, responsabilidades, estruturas e pessoal). Bem melhor seria enfatizar um novo arranjo, leve e flexível, ao estilo dos comitês, que provesse sinergia a entidades e instâncias já existentes, uma vez que estamos falando de normas referenciais.
Incentivar o aumento da competitividade e da inovação é imprescindível. Mas o atual projeto também não expressa compreensão de que, no setor do saneamento, isso não decorre da natureza jurídica do titular do serviço. Há empresas de todos os tipos —públicas, privadas e de economia mista— com bom, mediano e mau desempenho. O que pode garantir a eficiência são muito mais o fortalecimento de experiências bem-sucedidas, e sistemas de regulação e controle estratégicos e eficientes, norteados pelas necessidades sociais mais amplas. Também requer o aprimoramento dos sistemas concorrenciais e contratuais ao longo da prestação dos serviços, que são prestados por meio de uma multiplicidade de fornecedores atuando em parcerias.
Neste momento em que o Brasil demanda, com crescente urgência, mais e melhor saneamento básico e impulsos sustentáveis para retomada da atividade econômica, o novo marco do saneamento pode ser um fator chave de avanço e desenvolvimento. A aprovação e implementação de um projeto que se mostra fundamentalmente equivocado e inconsistente diante do desafio real que hoje se apresenta não dará conta dessa tarefa. E pode agravar o problema.
O que está a demandar regime de urgência por parte dos nossos parlamentares é, antes de tudo, que retirem as mãos da frente dos olhos e encarem com coragem a nova realidade do mundo e do país. Só assim poderão apresentar à sociedade brasileira respostas à altura das necessidades que urgem neste momento decisivo.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.