“A organização policial deve ser modificada para o exercício efetivo da função preventiva, ao invés de esperar que os fatos se ajustem à sua organização atual.”
David Bayley
Especialista em estudos policiais
Polícia alguma tem ou pode ter a autonomia administrativa, financeira e funcional pretendida no projeto de lei orgânica das Polícias Militares.
A sociedade concede ao Estado a exclusividade do uso legal da força através de seu aparato policial que, no limite, pode matar. O controle primário das instituições policiais deve ser exercido pelo governador, através de instrumentos universais como designação de seus responsáveis, promoções estratégicas, parâmetros de organização, condicionantes da gestão financeira, monitoramento da legalidade e ética das ações e da efetividade na prevenção dos crimes. E, com o potencial de crises do setor de segurança pública, que costumam cair no colo dos governadores, intervenções emergenciais, como a troca de comandos, devem fazer parte do arsenal de controle das polícias.
O projeto de lei orgânica, contudo, pretende autonomia ampla, impondo aos governadores lista tríplice para a designação dos comandantes, com status de secretário de Estado, mandato de dois anos e destituição autorizada apenas por “motivo relevante devidamente justificado”.
É necessário que as polícias brasileiras tenham uma lei que regule “a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”, conforme prevê o parágrafo 7º do artigo 144 da Constituição. Mas, passados 32 anos, nada foi feito, e as Polícias Militares ainda são reguladas, incrivelmente, pelo decreto-lei nº 667, de 1969, auge do governo militar.
Mesmo com as deficiências atuais, ocorreram evoluções significativas nas PMs, principalmente a partir da eleição de governadores em 1982, como a implantação da polícia comunitária, preparo para atuar em crises públicas, maior atenção às demandas sociais por padrões de contenção do uso da força e aos direitos humanos e melhoria em gestão e no desenvolvimento de tecnologias.
Quando os comandantes das PMs iniciaram a preparação do projeto de lei orgânica, com entidades representativas e parlamentares oriundos dessas forças, esperava-se que produzissem um documento apontando os caminhos de uma polícia para o futuro, altamente profissional e organizada para produzir o melhor resultado em sua atividade essencial, o policiamento. Mas não foi o que aconteceu: a palavra “policiamento” aparece três vezes nas mais de 11 mil palavras do texto. “Polícia” foi grafada 17 vezes, mas a palavra “militar” aparece em 274 oportunidades —o que mostra não só um claro retrocesso institucional, mas um conflito quanto à definição de sua identidade institucional.
Por um lado, reforçam o militarismo com a referência insistente de simetria às Forças Armadas e até com a extravagante criação de três níveis de generais; por outro, exigem diploma de direito para seus oficiais e salientam que suas funções são atividades jurídicas.
Como assim? Ora, um fundamento elementar das organizações, sejam públicas ou privadas, é que suas estruturas e processos funcionais devem se adequar às suas missões precípuas —e, assim sendo, não há lógica que polícias tenham simetria com o Exército ou a Força Aérea. Com as Polícias Civis reivindicando status de atividade jurídica e policiais militares pretendendo ser mais militares que policiais, quem vai ser policial para valer?
Por que renegam a relevância do papel da polícia na sociedade e o orgulho de serem, pura e simplesmente, policiais, sem tomar carona em outras instituições?
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