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João Chaves

Parabéns para quem? Migrantes e refugiados no Brasil da pandemia

Caravana de invisíveis resiste num país que não acolhe as pessoas

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João Chaves

Defensor público federal, é coordenador de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União em São Paulo

Neste domingo (20) e no próximo dia 25 de junho são comemorados, respectivamente, o Dia do Refugiado e do Imigrante. Datas que simbolizam o esforço de milhões de mulheres, homens e crianças pelo mundo, na luta por uma vida melhor e por um ambiente livre de perseguição e violações de direitos humanos. Celebrar a mobilidade humana numa época em que a imobilidade é a regra já seria um tema para reflexão. No Brasil da pandemia, pode ser contraditório.

Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as pessoas migrantes estão mais sujeitas aos efeitos socioeconômicos da pandemia de Covid-19 e mais expostas à contaminação pelo coronavírus. Além de ocuparem postos de trabalho mais precários em setores diretamente atingidos por medidas de distanciamento, como os de alimentação e comércio ambulante, a necessidade de manter remessas financeiras aos países de origem e a pressão decorrente de regras cada vez mais rígidas para permanência legal puseram em xeque os discursos de acolhimento e os compromissos internacionais com migrantes e refugiados.

No Brasil, vivemos sob uma política migratória de exceção desde março de 2020. Ao longo de toda a pandemia, o governo federal editou 30 portarias que restringem em diversos graus a entrada de migrantes e refugiados no território nacional, com critérios discriminatórios que penalizam especialmente os mais vulneráveis.

A entrada por via terrestre está praticamente proibida, com exceção da fronteira com o Paraguai, e aqueles que desafiarem a norma estão sujeitos a deportação imediata e impedidos de solicitar refúgio. Sob a alegação de emergência sanitária, que sequer se sustenta segundo especialistas da USP e contraria seu discurso cotidiano de leniência com o vírus, o país impede que pessoas vindas da Venezuela, reconhecidas pelo próprio Brasil como vítimas de graves violações de direitos humanos, possam aqui residir de modo regular e expor sua situação de refúgio. Mais que isso, deporta-as sem lhes garantir um processo justo, contrariando o princípio de não devolução ou rechaço ("non-refoulement") consagrado pelo Estatuto dos Refugiados de 1951, pelo direito internacional e pelas Leis de Migração (2017) e de Refúgio (1997).

No governo Jair Bolsonaro, o Brasil tornou-se o país que fecha as portas para solicitantes de refúgio, idosos, crianças e pessoas com deficiência em suas fronteiras terrestres, mas aceita turistas ricos, atletas ou empresários, desde que venham de avião. E tudo isso já traz consequências. Como se esperava, a medida não combateu a pandemia nem impediu a mobilidade humana.

Ao contrário, aumentou as rotas e lucros de contrabandistas de migrantes —os chamados “coiotes”— e gerou um grupo de milhares, ou talvez dezenas de milhares, de pessoas indocumentadas no país, contra todos os princípios que o Brasil historicamente defendeu. Se a abertura total das fronteiras é impossível, o fechamento indiscriminado e a seletividade contra grupos vulneráveis é uma tragédia para a governança migratória brasileira.

Tanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) alertam para a inadequação de medidas de restrição total de entrada que não respeitem o direito ao refúgio e a dignidade de pessoas migrantes. Rastreio de casos, testagem e quarentena seriam mais recomendados, mas nunca foram plenamente aplicados nem sequer cogitados.

Enquanto isso, perante os olhos do mundo o Brasil faz uso de ações pontuais, como a Operação Acolhida em Roraima, como cortina de fumaça para disfarçar o que há mais de um ano impôs como agenda: o instituto do refúgio está suspenso no país. Não somos a nação que acolhe pessoas, mas a que tolera migrantes irregulares. Em nome de uma falsa segurança, acenamos com direitos numa mão para tirá-los com a outra.

Diversas ações coletivas propostas por Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal, Caritas Arquidiocesana de São Paulo e Conectas Direitos Humanos questionam a proibição de solicitação de refúgio. Enquanto isso, migrantes e refugiados que, forçados pela necessidade, ingressaram durante a pandemia, lutam sem documentos e sob o medo da deportação para obter CPFs, acessar serviços de saúde, matricular suas crianças na rede escolar e conseguir trabalho decente. No país das 500 mil vítimas de Covid-19, formam a caravana dos invisíveis. Pela resistência, merecem nossa homenagem.

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