Liberal de araque

Se o Brasil tivesse investido mais em educação do que na Guerra às Drogas, não veríamos ministro e presidente falando bobagem sobre liberdade e liberalismo

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Lygia Maria

Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

Ao justificar por que é contra a exigência de passaporte vacinal nos aeroportos do país, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que é "melhor perder a vida do que a liberdade". O presidente da República também já proferiu argumento semelhante, ao concordar com pessoas que não querem se vacinar, os chamados antivax.

Seria o caso, então, de perguntar ao ministro e ao presidente quando o governo legalizará as drogas. Afinal, não há lei que atente mais contra a liberdade do que aquela que proíbe o indivíduo de fazer o que quiser com seu próprio corpo.

O filósofo liberal John Stuart Mill (1806-1873) disse: "A respeito de si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano". Se o governo se coloca como arauto do liberalismo, não faz sentido manter a criminalização das drogas; ou melhor, só de algumas drogas, pois outras (álcool e tabaco) são comercializadas livremente. Ou seja, temos aqui um liberalismo de araque.

O filósofo liberal John Stuart Mill combateu a escravidão e a discriminação das mulheres - London Stereoscopic Company

A frase de Mill não implica que não deva haver leis. Para o liberalismo, o indivíduo é soberano para fazer mal a si mesmo, não aos outros. Ora, esse é justamente o caso da vacina contra Covid-19 e da exigência do passaporte vacinal.

Estudos mostram que o risco de pessoas vacinadas transmitirem o vírus é até 70% menor do que o de pessoas não vacinadas. Logo, o indivíduo que não se vacina e o governo que não fiscaliza a vacinação nos aeroportos colocam a saúde e a vida das pessoas em risco. Não há nada de liberal em alegar liberdade para infectar alguém.

Já o uso de drogas prejudica apenas o usuário. Por isso, vários pesquisadores de vertente liberal são a favor da legalização. Por exemplo, o economista Milton Friedman —a propósito, muito citado por bolsonaristas ditos liberais— defendia a legalização das drogas desde os anos 70. Pode-se alegar que drogas geram violência, mas o que gera violência é o tráfico e esse surge com a ilegalidade.

Leis de mercado básicas: produtos proibidos ficam mais caros (durante a Lei Seca, por exemplo, o preço da cerveja subiu 600%, e o uísque, 310%); quanto maior o risco, maior o lucro; o risco leva à aquisição de armas e disputas de mercado entre facções rivais; o preço elevado não leva necessariamente à diminuição robusta do consumo pois há demandas elásticas e inelásticas.

Uma política pública deve ser uma alocação de recursos escassos com base em evidências. A pergunta básica é: para cada real gasto com a proibição das drogas, ganha-se um real de volta? Onde mais esse dinheiro poderia ser investido?

Talvez, se o Brasil tivesse investido mais em educação do que na Guerra às Drogas, não veríamos um ministro e um presidente da República falando tanta bobagem sobre liberdade e liberalismo.

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