Descrição de chapéu
André Rosa

Carpeaux, 80

Ensaísta trouxe para a crítica literária novos parâmetros de comparação e diálogo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

André Rosa

Mestrando em literatura comparada pelo PPGCL‐UFRJ/Capes

"Ninguém é profeta em sua pátria"

Otto Maria Carpeaux

Há 80 anos, em abril de 1941, Otto Maria Carpeaux estreou nas letras brasileiras com um ensaio sobre Jacob Burckhardt. Os seus primeiros textos despertaram imediatamente a atenção dos leitores, pois traziam aquilo que passaria a ser a sua marca: o ineditismo dos autores e das obras sobre as quais tratava.

Além da ausência de traduções, havia o problema maior do alheamento em relação àquilo que se publicava e se discutia na Europa. Quando percebeu esse descompasso, Carpeaux encontrou uma oportunidade de se estabelecer como um mediador cultural entre o Brasil e a literatura europeia-ocidental.

Desse modo, autores canônicos do século 20, como Franz Kafka, Robert Musil e Erich Auerbach, foram introduzidos entre nós por meio de seus ensaios. Contudo, para além das novidades trazidas por Carpeaux, que certamente mudaram os rumos de nossa crítica literária, há um aspecto importante de sua vida e obra que não foi ainda devidamente aprofundado: o processo de assimilação da literatura brasileira e o próprio abrasileiramento do ex-austríaco.

O escritor, jornalista e crítico literário Otto Maria Carpeaux autografa, em 1959, o livro "História da Literatura Ocidental", em São Paulo - Folhapress

Quando chegou ao Brasil, em setembro de 1939, após uma longa fuga da fúria nazista, Carpeaux ainda não sabia português. O seu único contato com a literatura brasileira até então havia se dado no momento da vinda, no navio, por meio de uma tradução francesa da crônica "O Velho Senado", de Machado de Assis, emprestada da biblioteca de bordo. Na Europa, somente dois nomes brasileiros chegaram aos seus ouvidos, o de Alceu Amoroso Lima e o de Heitor Villa-Lobos, de quem tinha ouvido algumas composições em Paris.

A integração à vida brasileira, no entanto, foi acelerada: aprendeu a língua em poucos meses, por meio da leitura, e rapidamente desenvolveu um estilo próprio, elogiado por mestres como Carlos Drummond Andrade e Lúcia Miguel Pereira. Além disso, cercou-se do fino da intelectualidade. Na crítica literária, despertou a admiração de Brito Broca, Astrojildo Pereira e Álvaro Lins; este último, à época o maior de nossos críticos, foi quem o apresentou aos leitores do Correio da Manhã por meio do artigo "Um novo companheiro". Entre poetas e romancistas, tornou-se amigo de Bandeira, Augusto Frederico Schmidt, Graciliano Ramos e José Lins do Rêgo. E, para além da literatura, também fez amizade com os sociólogos Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda. Não é pouco. A recepção fraternal ao amigo que deixava para trás uma Europa em ruínas foi, sem dúvida, um fator determinante para o florescimento de uma obra vigorosa e criativa —e seguramente evitou um destino trágico como o de seu compatriota Stefan Zweig.

A maior e mais relevante parte de sua obra foi escrita em português; vale registrar, além do mais, que foi aqui que Carpeaux se tornou crítico literário. A sua "História da Literatura Ocidental", trabalho de vasta erudição publicado em nove volumes entre 1959 e 1966, marca um momento único de nossa produção intelectual, pois não havia —e ainda não há— qualquer obra entre nós que abrangesse um conjunto tão extenso de autores e fases da literatura europeia. Mas voltemos às relações de Carpeaux com as letras brasileiras.

Otto Maria Carpeaux e o escritor Carlos Heitor Cony - Manchete

Até a década de 1950, não havia uma bibliografia que fizesse um balanço da abundância de livros nacionais cujo valor até então se ignorava, ou mesmo um trabalho que tratasse do que tínhamos em termos de historiografia literária e estudos críticos. Por conta dessa escassez, Carpeaux publicou a "Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira", que buscava servir de guia àqueles que pretendiam se iniciar em nossa literatura, bem como atenuar algumas dificuldades com as quais o próprio crítico precisou lidar ao imergir nos estudos literários do país que adotou.

Além de preencher essas faltas, Carpeaux estava também bastante atento à nossa produção contemporânea, inclusive àquela que se fazia fora do eixo Rio-São Paulo, como demonstrou ao tratar de Bernardo Élis e a nova literatura goiana, ou Armindo Pereira e a literatura sergipana. É seu o cuidadoso prefácio ao livro "Antologia de Contos de Escritores Novos do Brasil" (Revista Branca, 1947), com autores como Breno Accioly, Almeida Fischer, Lygia Fagundes Telles, Murilo Rubião, Roland Corbisier e Xavier Placer, alguns deles estreantes.

A atenção dada à literatura brasileira contemporânea de então, além de seu conhecido interesse pela literatura já consagrada de nomes como Machado de Assis e Augusto dos Anjos, revela que seus olhos já não estavam mais voltados para a Áustria, em particular, ou para a Europa como um todo, mas totalmente para o Brasil e as possibilidades de um país que queria se fazer para si, com traços próprios.

Otto Maria Carpeaux durante depoimento no Departamento Federal de Segurança Pública, em 1968 - Folhapress

Ademais, já veterano, Carpeaux foi também generoso com as gerações mais novas de críticos literários. Escreveu textos elogiando a inteligência de Alfredo Bosi e Franklin de Oliveira. Em um ensaio de 1965, chegou a se referir ao uspiano Antonio Cândido como "o maior crítico literário da atualidade".

Todavia, com o golpe militar de 1964, Carpeaux resolveu deixar a literatura para se dedicar à luta política. Tornou-se um opositor veemente da ditadura. Passou a escrever textos políticos para jornais como o Folha da Semana, ligado ao Partido Comunista Brasileiro, e revistas como a Encontros com a Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, à época a mais importante publicação da esquerda.

Os seus prefácios já não figuravam mais entre livros de literatura, mas sim em obras engajadas como "Argélia, o Caminho da Independência" (Civilização Brasileira, 1966) e "O Poder Jovem" (Civilização Brasileira, 1966), de Arthur José Poerner. No entanto, para não dizer que a literatura ficou totalmente de lado durante os anos de enfrentamento, Carpeaux recorreu a "Os Sertões", de Euclides da Cunha, a fim de fazer uma defesa da guerrilha do Caparaó. Intitulado "A Lição de Canudos, sempre atual", o texto de 1966 parte da resistência dos sertanejos para exaltar a insurreição armada. O texto, que circulou clandestinamente e sem assinatura, só foi descoberto na década de 1990, entre as coisas de Carpeaux, e a sua autoria foi atribuída por conta de uma correção feita à caneta. Hoje, o escrito pertence ao arquivo do escritor na Fundação Casa de Rui Barbosa.

Vale notar que, antes do Brasil, o caminho de Carpeaux já havia sido longo. Na Áustria, gozou da confiança de chefes de Estado e dirigiu algumas das mais importantes publicações católicas da Europa. Conheceu pessoalmente Franz Kafka e foi aluno de Benedetto Croce. Só conseguiu chegar ao Brasil, acompanhado de sua esposa Hélene Silberherz, por conta de uma intervenção do papa Pio 12 junto a Getúlio Vargas.

Todo esse passado, sobre o qual ele não gostava de falar, ficou para trás junto com o sobrenome Karpfen, que deixou de usar quando assinou o seu primeiro ensaio no Correio da Manhã. Em uma de suas últimas entrevistas, contou que "quando, em 1953, passei seis meses na Europa, revendo todos os lugares onde havia vivido, na Áustria e Alemanha, Bélgica e Holanda, Itália e França, já não fiquei emocionado. Emocionado fiquei, sim, ao rever o Rio de Janeiro".

A sua presença na vida intelectual brasileira não foi efêmera. Com todo um universo de referências literárias eruditas, Carpeaux trouxe para a crítica literária novos parâmetros de comparação e diálogo que só enriqueceram as nossas letras. Além das obras anteriormente citadas, poderíamos falar ainda em mais de mil ensaios, boa parte deles até hoje dispersos; uma história da literatura alemã, uma história da música erudita, uma antologia de contos russos em nove volumes e mais alguns outros trabalhos não menos relevantes.

Aos poucos, como previu Antonio Houaiss, a fisionomia moral e intelectual de Otto Maria Carpeaux será reconstituída mediante um exame atento de sua obra. É importante que as novas gerações de leitores e estudiosos estejam atentas ao seu legado, que, entre nós, teve início há 80 anos e ainda não se esgotou.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.