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Luiz Guilherme Piva

Economia, política e gatos

Sempre haverá manhas, rosnados e o famoso pulo

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Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

A visão dominante na economia propõe otimizar o uso de recursos escassos para combinar o maior crescimento com a maior equidade. O primado do mercado e a ação racional dos agentes seriam as ferramentas que propiciariam tal combinação, e existiria uma função matemática para o problema.

Porém, como necessidades e interesses dos indivíduos e grupos sociais são conflitantes, é necessário introduzir na equação a política, que são as relações de colaboração e enfrentamento que eles travam na busca por poder (ou: exatamente por mais recursos e melhores condições de vida). Isso implica incertezas permanentes.

Como se vê, são bichos parecidos. Mas muito diferentes. Se fossem gatos, por exemplo, a economia convencional seria o de Voltaire; e a política, o de Schrödinger.

O que aconteceu com o gato filosófico de Schrödinger, a experiência mais famosa da física quântica
O gato filosófico de Schrödinger, a experiência mais famosa da física quântica - Harald Ritsch/Science Photo Library

Ao primeiro é atribuída a definição de metafísica citada por Guimarães Rosa num prefácio de Tutameia: "É um cego, com olhos vendados, num quarto escuro, procurando um gato preto... Que não está lá". A comparação entre as aspirações e ferramentas da economia e as da metafísica é apropriada. É impossível encontrar, fora de modelos mentais e teóricos, o equilíbrio geral da visão econômica dominante. A citação desse prefácio não é fortuita: nele o autor trata das "anedotas de abstração", aquelas que valem pelo que não contêm.

Já ao segundo devemos o exemplo da incerteza na física quântica. Ele propõe o exercício imaginário de se colocar um gato numa caixa junto com um pote de gás mortífero, um emissor de radiação e um martelo que, acionado pela radiação, quebra o pote e, assim, mata o gato. Ocorre que há só 50% de chance de a radiação ser emitida. Daí que, enquanto a caixa ficar fechada, haverá igual probabilidade de o gato estar vivo ou morto. Esta é a incerteza (mas, ao contrário do gato econômico ou metafísico, ele estará lá). E mais: nesta situação, o gato estará, ao mesmo tempo, vivo e morto —e é preciso ter medidas (funções) para os dois estados, não só para um deles.

Personagem "Gato que Ri", criado pelo autor Lewis Carroll em "As Aventuras de Alice no País das Maravilhas" - Divulgação

A situação se aproxima da política, que, no entanto, é ainda mais complexa. A todo momento é preciso negociar e confrontar múltiplos interesses ambíguos ou ambivalentes, só que sem nunca haver a realidade e a visão da realidade "corretas" —que a metafísica e a economia definiriam como ontológicas.

A política (e a economia não convencional, que a incorpora à equação), portanto, e não a economia dominante, é a melhor maneira de se enfrentar a questão da produção e da distribuição de riqueza —sem, contudo, jamais conseguir solucioná-la, porque não é possível conhecer a situação real, que tem múltiplos estados simultâneos. Será preciso continuamente formular e embaralhar infinitas funções. Isto sim é incerteza.

Já no problema de Schrödinger, se alguém quiser sanar a incerteza, poderá, probabilisticamente, fazê-lo, a crer no ditado, com 14 aberturas da caixa, dado que, depois da sétima morte do gato, a dúvida terminará. (E ainda poderá ter final feliz: se o gato na caixa for o da Alice —ou de Cheshire—, mesmo depois da sétima morte ele oferecerá ao pesquisador curioso, na 15ª tentativa, um grande sorriso.)

Um nadica perto da incerteza infinda da política. Nela, as mudanças não acabam. Sempre haverá os enigmas das manhas e rosnados —além do famoso pulo.

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