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Gustavo Fioratti

Sobre 'Com Açúcar, com Afeto'

Cancelamento da expressão artística, como na música de Chico, é imenso equívoco

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Gustavo Fioratti

Repórter de Cotidiano, foi crítico de teatro na Folha

O mundo e a produção de ideias estão se tornando cada vez mais pobres por causa do conjunto de manifestações políticas que pegou carona nas chamadas pautas identitárias. As perdas impostas pelo autoritarismo de quem se coloca como porta-voz da negritude, da homossexualidade e das mulheres são imensas.

O cantor e compositor Chico Buarque resolveu aderir à idiotice, cancelando de seu repertório uma de suas próprias canções, a bela "Com Açúcar, com Afeto", que sofreu recente ataque nas redes sociais.

bebê, mulher e menina em foto preto e branca
Chico Buarque e Nara Leão em fotografia de 1967 reproduzida na biografia 'Ninguém Pode com Nara Leão', de Tom Cardoso - Reprodução


Não tenho instrumento para aferir se, na intimidade, Chico Buarque é machista ou não, se tripudiou de mulheres do alto do primeiro trono que lhe foi concedido, o de homem, branco e heterossexual.

Quando ele começou a lançar suas composições, em 1966, o cenário era mais hostil para as mulheres: homens compunham, mulheres interpretavam, e essa relação perversa era declarada como uma qualidade bacana do universo artístico. Às mulheres era oferecido um suposto cargo nobre, sobre o palco.

Não era só na música. No teatro, elegeram José Celso, Antunes Filho e Gerald Thomas como tripé das artes dramáticas. Durou muito tempo essa esquisitice. No cinema nacional, tente se lembrar de alguma mulher que tenha se destacado na direção de um filme até Carla Camurati consolidar a chamada "Retomada" com "Carlota Joaquina", em 1995.

O mundo, naqueles anos 1960 cheios de açúcar e afeto, era mais machista, e parece ingênuo achar que Chico não se beneficiou de sua inequívoca produção de testosterona.

Porém, não é de Chico Buarque que estamos falando agora, mas sim da obra de Chico Buarque. Existe, no campo da música, das artes visuais e da dramaturgia, um recurso bastante antigo que se chama eu lírico. Aquilo que a letra de uma música transcreve não é, rigorosamente, a mesma coisa que seu autor quer dizer.


Em outras palavras, quando Chico canta "joga bosta na Geni", um trecho lindo da peça "Ópera do Malandro", parece bastante razoável pressupor que ele, como autor, não está sugerindo que se lance excrementos nas mulheres —ou, naquele caso específico, nas prostitutas. É um personagem que faz isso. E é bem ok detestar esse personagem, diga-se de passagem.

Importante relembrar, aqui, que Chico Buarque é excelente dramaturgo, escreveu grandes musicais. E que, à parte a baboseira de que traduz perfeitamente a alma feminina (ideia, esta sim, bastante machista, porque rouba das mulheres a expressão de uma voz que muitas vezes não lhes foi concedida), ele levou ao palco personagens femininas de grande complexidade.

A sensibilidade de Chico Buarque com as mulheres se materializou em canções como "Atrás da Porta", que Elis Regina, como intérprete, elevou a um dos pontos mais altos da carreira dele.


Aqueles que agora pedem o cancelamento de "Com Açúcar, com Afeto", canção que traz a voz de uma mulher submissa, vítima e portadora do machismo como tantas que vemos por aí, contribuem com uma prática nefasta: ceifar a produção de obras que podem, por meio de recursos literários tão ricos, nos colocar diante das nossas diversas feridas, sendo o machismo apenas uma delas.


A arte é, por excelência, senhora das subjetividades. O que se diz não é o que é dito, e os significados abertos caracterizam bons trabalhos.

É por isso que, quando Tim Maia coloca na pista de dança a frase "só não vale dançar homem com homem nem mulher com mulher", faço questão de sair comemorando. E afirmo aqui que estou preservando, neste trecho do texto, o direito ao meu lugar de fala.

Considero a canção "Vale Tudo" um hino libertador das pistas de dança porque ela, na verdade, debocha de quem pensa que homens não podem dançar com homens. O eu lírico é capaz de muita coisa, inclusive de representar o contrário daquilo que está sendo dito.

Por isso, o autoritarismo dos cancelamentos sobre a expressão artística, especialmente quando o tema esbarra nas questões das minorias e das opressões, tornou-se, muitas vezes, um imenso equívoco. Censura burra e desmesurada.

Obras de arte que se pretendem educativas não educam ninguém. Os defensores da retidão moral dessa imensa galeria de personagens que a humanidade tem criado e recriado por meio da ficção impedem espelhamentos de natureza crítica. Tornam o mundo cada vez mais sem graça.

Estamos vivendo, no conservadorismo que avançou no país, o que o refugo desse equívoco nos impõe como resposta. A reação dos conservadores, com frequência, traz mais intolerância. Produzem-se textos desonestos e de pouco valor intelectual, criados apenas como contrapontos a essas vozes que, isoladas em castelos de prepotência, se julgam capazes de falar em nome do outro e do oprimido.

Em nome de uma dona de casa, por exemplo. E, no fim das contas, esta sim, permanece quieta. Ouvindo Chico Buarque, talvez.

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