Descrição de chapéu
Paulo Rená da Silva Santarém

A Justiça deve proibir o Telegram no Brasil? NÃO

Ato afetaria milhões sem relação direta com a propagação da desinformação

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Paulo Rená da Silva Santarém

Professor de responsabilidade civil e direito, inovação e tecnologia no Centro Universitário de Brasília (Ceub); foi gestor do processo de elaboração do Marco Civil da Internet no Ministério da Justiça

Proibir judicialmente o Telegram no Brasil seria uma medida abusiva e desproporcional, contrária à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e com repercussão severa para milhões de pessoas sem relação direta com a propagação de desinformação. A tarefa de reprimir ilícitos não dá salvo conduto ao Poder Judiciário. O Estado democrático de Direito se funda na soberania e na dignidade da pessoa humana, bem como na cidadania, no par trabalho e livre iniciativa, e na pluralidade política, tendo por princípios o devido processo legal, a legalidade e a proporcionalidade.

Empresas devem seguir nossa legislação tanto quanto o Estado. A lei brasileira não prevê expressamente bloquear o acesso a serviço online como pena pelo descumprimento de ordem judicial ou de qualquer obrigação. No Marco Civil da Internet e na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), proibir o exercício de atividades é sanção própria para infrações à proteção de dados pessoais e comunicações privadas. As autoridades não acusam o Telegram de "desproteger" os dados em seu sistema. E ambas leis são gradativas: advertir, depois multar e, em último caso, suspender ou proibir.

Analisando os bloqueios do WhatsApp, os ministros do STF Edson Fachin e Rosa Weber votaram contra ordens judiciais de quebra da criptografia de ponta a ponta. O julgamento está parado desde que Alexandre de Moraes pediu vistas, em maio de 2020, mas já amparou decisões do STJ. E, em 2009, ao reputar a Lei de Imprensa incompatível com a Constituição, o STF rechaçou toda censura prévia estatal: a imposição judicial de responsabilidades civis e penais deve mirar quem extrapola a livre expressão, não cabendo atuação premonitória com interrupção total de outras comunicações.

Sim, há usos ilegais dos grupos com até 200 mil integrantes e dos famigerados canais com vagas ilimitadas. Mas há também muitos usos lícitos: os mais divertidos se dedicam ao Big Brother Brasil; órgãos públicos prestam informações e recebem denúncias; pequenos negócios fazem comércio eletrônico; e grandes empresas fortalecem suas marcas, oferecendo suporte, promoções e até notícias, como no t.me/folha. Bloquear o Telegram inteiro é jogar fora o bebê com a água suja do banho.

O preço de ainda não ter sido cumprida a ordem de prender Allan dos Santos recairia sobre gente demais: são 60% dos telefones no Brasil. Não lhes bastaria recorrer a outros serviços similares: não oferecem os mesmos recursos nem a mesma rede de contatos, o grande valor social de um sistema de mensagens instantâneas e que não se estabelece de uma hora para outra.

Os servidores e o protocolo de criptografia do Telegram foram pensados contra possíveis bloqueios. Por isso, quem defende a medida deveria demonstrar como realizá-la, por exemplo, sem atrapalhar o acesso a serviços online de países vizinhos, como ocorreu nos casos do YouTube (2006) e do WhatsApp (2015-2016).

Um novo bloqueio geraria prejuízo certo para quem faz uso legal do aplicativo —e seria ineficaz para quem conseguisse burlar a obstrução. Uma decisão inócua em sua pretensão, servindo de chacota e dando mais popularidade ao sujeito foragido. Um altíssimo custo social e jurídico de afetar a credibilidade do Judiciário e ofender princípios constitucionais: um tiro de canhão pela culatra.

Reavivar a memória coletiva com a repetição dos transtornos vividos no Brasil e em outros países não garantiria nem valor pedagógico. Prefiro crer que já aprendemos com nossos erros anteriores.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.