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Ricardo Lewandowski

Soberania em um mundo digital

Territórios mapeados começam a competir com um novo espaço virtual

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Ricardo Lewandowski

Ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Desconhecida na antiguidade greco-romana e na Idade Média, a concepção jurídica de soberania somente se firmou nos albores da Era Moderna, quando determinados reis e príncipes passaram a concentrar o poder político em suas mãos, antes exercido de forma difusa pelos senhores feudais. Sem embargo, a dominação de um homem ou grupo de homens sobre outros pela força, crença ou tradição sempre existiu.

Ocorre que, a partir das revoluções liberais-burguesas, deflagradas no século 18 contra o absolutismo monárquico, o poder do soberano —leia-se estatal—, apesar de ainda amplo, passou a ser limitado pelo direito. Melhor explicando: no âmbito interno, os Estados, embora possam impor suas leis e determinações coercitivamente dentro dos respectivos territórios, precisam respeitar os direitos e garantias fundamentais. Já no plano externo, não obstante atuem com total independência e desembaraço, devem observar as regras do direito internacional e os princípios universais que o informam.

Nos tempos atuais, com o advento da internet, a ideia de territórios mapeados com minuciosa precisão, inteiramente submetidos às distintas jurisdições estatais, começou a competir com a nova realidade de um espaço virtual, sem fronteiras definidas, no qual as interações humanas, para o bem ou para o mal, ocorrem instantaneamente, com uma frequência cada vez maior, superando distâncias e barreiras geográficas.

Tal fenômeno suscita algumas indagações jurídicas ainda não inteiramente respondidas. Por exemplo: seria possível conferir a esse mundo digital um tratamento análogo aos espaços aéreo e marítimo, sobre os quais os Estados podem legitimamente impor as suas normas, ou estaria ele imune a qualquer disciplina legal, assim como ocorre com o alto-mar, a exosfera e os corpos celestes?

A questão cresce ainda em complexidade quando se constata que esse espaço virtual é dominado por grandes empresas privadas transnacionais, conhecidas como "big techs", as quais sobrevivem, basicamente, da comercialização de nossos dados pessoais, contínua e massivamente capturados por meio de suas plataformas digitais, em geral disponibilizadas de forma gratuita.

Esses dados, submetidos a uma análise estatística e com o auxílio de algoritmos, permitem prever —e o que é muito preocupante— induzir comportamentos individuais ou coletivos quanto a hábitos de consumo, inclinações afetivas e preferências políticas, colocando em risco, neste último caso, a livre formação e manifestação da vontade dos eleitores.

Para piorar as coisas, sob a superfície aparentemente plácida desse mundo digital, existe uma camada profunda, inacessível aos usuários comuns, conhecida por dark web ou deep web, onde são gestadas as fake news mais insidiosas e toda a sorte de negócios ilícitos, operados mediante criptomoedas, com destaque para o tráfico de armas, drogas e pessoas. É o ambiente onde atuam com desenvoltura grandes organizações criminosas, grupos terroristas e até mesmo agências estatais com propósitos escusos.

O intrincado dilema posto para os Estados democráticos por essa nova realidade, ainda não inteiramente compreendida, consiste em conciliar a sua obrigação constitucional de garantir a plena liberdade de expressão e comunicação com o seu dever institucional de reprimir mensagens —sobretudo aquelas impulsionadas em massa por robôs— que tenham o potencial de colocar em risco a vida, a segurança e, paradoxalmente, o próprio livre arbítrio dos cidadãos.

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