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Marco Aurelio Moura dos Santos

O desafio de romper o passado autoritário

Sob violações contínuas, processo de transição democrática segue inconcluso

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Marco Aurelio Moura dos Santos

Doutor em direito internacional e comparado (USP), é professor de direito e pesquisador do Gepim-Cepim (Centro de Estudos sobre a Proteção Internacional das Minorias da USP)

No século passado, o Brasil foi vítima de um extenso período de governança militar, como a maioria dos países latino-americanos. Ponto comum entre os regimes foi a perseguição de militantes de esquerda como forma de erradicar "ameaças comunistas", fundamento utilizado para instaurar ditaduras. No Brasil, entre 1964 e 1985, foram colocadas em prática pelos ocupantes do poder atividades denominadas violações aos direitos humanos (desaparecimentos forçados, torturas, sequestros e execuções sumárias).

A ditadura implementada por Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, também tinha deixado um rastro de violência e repressão.

Muito embora a sucessão de regimes tenha marcado negativamente a história do Brasil, o legado deixado pelos períodos ditatoriais não foi tratado de modo consistente pelos governos brasileiros. Houve troca constitucional em 1988, visando fortalecer a democracia, mas algumas instituições ainda detêm a herança da ditadura, como a violência presente nas atividades policiais.

Há um projeto surgido no direito Internacional denominado "justiça de transição", que consiste num complexo de medidas para o enfrentamento da violência. O conceito é atribuído originalmente à professora Ruti Teitel, fundadora da Sociedade Americana de Direito Internacional, em 1991. O termo estava ligado aos processos históricos de luta em prol da transição de ditaduras para regimes democráticos e busca confrontar o abuso do passado e servir de apoio para a transformação política, reafirmando o respeito aos direitos humanos. O Conselho de Segurança da ONU afirmou, no relatório S/2004/16, quatro vertentes para o projeto: direito à reparação das vítimas; responsabilização dos agentes que violaram os direitos humanos; readequação democrática das instituições; direito à ampla memória e verdade.

No Brasil, as políticas de justiça transicional foram iniciadas no governo de Fernando Henrique Cardoso. A lei 9.140, de 1995, afirmou o reconhecimento de responsabilidade estatal por abusos e violações da repressão militar. Já a lei 10.559/2002 estendeu a responsabilidade do Estado na imposição da perda de direitos laborais aos perpetradores das atrocidades. Após intenso —e ainda recorrente— debate político e jurídico, a lei 12.528/2011, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff, criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV). O objetivo principal seria o exame e o esclarecimento de graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil; iniciativa com função de efetivar o direito à memória, verdade histórica e reconciliação nacional.

Em 2014, o relatório da CNV apresentou, em seu texto final, lista com 377 nomes de pessoas que violaram os direitos humanos durante a ditadura e recomendou a responsabilização criminal, civil e administrativa de 196 indivíduos que dessa lista permaneciam vivos. A comissão delimitou que as violações foram cometidas por agentes do Estado, a seu serviço ou com a conivência estatal, contra cidadãos brasileiros ou estrangeiros. Houve demonstração de como militares, trabalhadores organizados, camponeses, igrejas cristãs, indígenas, homossexuais e a universidade foram afetados pela ditadura e pela repressão. No volume final, há registro das circunstâncias de mortes e desaparecimentos políticos de 434 pessoas.

A "justiça de transição" lança o delicado desafio de romper com o passado autoritário e viabilizar a passagem à ordem democrática. Há risco de que concessões ao passado possam debilitar a busca democrática, corrompendo-a com o continuísmo autoritário. O respeito à memória e à verdade são medidas necessárias para a construção da transição democrática.

A escolha eleitoral de 2018 por um candidato que nutre simpatia pela ditadura militar e presta homenagem constante a um dos seus torturadores —coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra— demonstrou que a sociedade brasileira, em alguma parcela, parece desconhecer ou pretende esquecer que o processo de transição no Brasil ainda não se efetivou, e as violações daquele período permanecem sem reparação.

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