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Becky S. Korich

Ressaca do Dia das Mães

Ninguém assume um papel sem consentir, e mães sempre cometem esse erro

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Becky S. Korich

Advogada, dramaturga e cronista do blog www.quarentenando.com

Segundo domingo de maio, Dia das Mães, o paradoxo: é justamente o dia do ano em que mães são menos mães.

De manhã ninguém me acorda para pedir o café da manhã, muito pelo contrário. Mal abro os olhos e recebo na cama uma bandeja —desordenada, porém muito bem-intencionada— com várias frutas, pães, bolo, tapioca, ovos e todos os tipos de queijos. Não me preocupo em ensinar as crianças que não se come tudo isso num desjejum e que, na vida, temos que ser dosados. Afinal, Dia das Mães não é dia de educar, é dia de receber, dia de se despreocupar, dia de ser menos mãe.

A manhã flui com uma tranquilidade incomum. Ninguém pede nada, ninguém reclama de nada, nenhuma briga entre os filhos para eu separar. Tudo na santa paz e amor. Só uma mãe poderia atrapalhar tamanha calmaria do lar.

Chegam os presentes. Faço cara de surpresa, e os filhos fingem que acreditam. E nos paparicam, dizendo coisas tão lindas que eu me esqueço o quanto os amo. Fico centrada apenas em mim, focada no amor que recebo.

Não preciso lembrá-los de escovar os dentes, arrumar o quarto, tirar o pijama. Nesse dia eles sabem muito bem o que fazer. Nesse dia, justo no Dia das Mães, eles não precisam de uma mãe.

Me dou ao luxo de tomar um banho de espuma, trancando a porta do banheiro e ligando o som no volume máximo. Ninguém bate na porta, ninguém interrompe o meu banho, ninguém grita lá fora. Sou respeitada como se fosse uma visita ilustre. Talvez eu fosse mesmo essa visita ilustre que vem nos visitar uma vez por ano.

Até o marido se esquece que sou mãe. Ele "ajuda" na arrumação da casa, sem que isso seja um grande favor, se envolve nas lições de casa das crianças e depois nos convida para dar uma volta de bicicleta. E acontece o improvável: vamos todos andar de bicicleta no meu parque preferido. E acontece o impossível: todos prontos me esperam na porta de casa, sem precisar de nenhuma mãe para agilizar o processo.

Minha foto é postada no Instagram de um dos filhos. "Te amo, mãe". Nos stories, é claro, para que não dure mais do que 24 horas. A vergonha da mãe de repente desaparece, mesmo porque, por não ser tão mãe assim, não sou tão mico assim —pelo menos por 24 horas.

Esqueço totalmente do almoço das crianças, do estudo para a prova do dia seguinte. Avançamos a tarde sem rumo. Pensei mais em mim, usei meu egoísmo, coisa que uma mãe que se preza nunca faria.

Mas, na medida em que a tarde cedia espaço para a noite, ela levava consigo a serenidade. O cansaço dos filhos os fez esquecer a magia do dia, e eles se lembraram da mãe. Respondem deseducadamente, me culpam por ter roubado o tempo dos eletrônicos, entram em casa mal-humorados deixando os tênis espalhados pela sala e exigem uma boa janta na mesa. Tudo à revelia do pai, que volta a se esconder dentro de si, aproveitando o ressurgimento da mãe.

De noite, tudo volta ao normal. Volto a exagerar no exercício da maternidade, mesmo porque o ato de ser mãe é, em si, um exagero. E as coisas vão voltando ao normal; ou melhor, ao que aceito como normal, porque é fato: ninguém assume um papel sem consentir. E mães sempre cometem esse erro.

Sai de cena o Dia das Mães, voltam os dias das mães. Voltam o amor incondicional, a preocupação incessante com os filhos, o gerenciamento de tarefas e demandas, a falta de tempo para si.

Nessa ressaca, concluo: o Dia das Mães acaba na noite das mães.

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