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Tereza Campello e Sandra Brandão

Fome voltou ao Brasil a partir do golpe de 2016

Para superá-la novamente, país precisa crescer e reconstruir políticas públicas

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Tereza Campello

Economista, titular da Cátedra Josué de Castro/USP e ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011-16, governo Dilma)

Sandra Brandão

Economista, mestre em Economia (Unicamp) e ex-chefe do Gabinete de Informações da Presidência da República (2011-16, governo Dilma)

Em reportagem publicada no dia 26 de maio ("Insegurança alimentar dobra no Brasil em sete anos e afeta mais as crianças"), repercutindo o competente estudo de Marcelo Neri, pesquisador da FGV Social, com dados do Gallup World Poll sobre a gravíssima situação da insegurança alimentar no Brasil, esta Folha crava que "a taxa de insegurança alimentar na população brasileira dobrou a partir de 2014, ano em que a economia entrou em recessão no governo Dilma Rousseff (2011-2016)".

Tal argumento não encontra fundamento no estudo de Neri, nas tabelas e gráficos que o acompanham ou no ranking feito com a metodologia do Gallup World Poll. Os dados sobre o Brasil permitem três conclusões: 2014 registrou a menor parcela de brasileiros que diziam faltar dinheiro para alimentação; inexistem evidências de que o aumento tenha sido em 2015 ou no início de 2016; a situação nunca foi tão ruim como a atual, quando essa parcela é o dobro da existente no governo Dilma.

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Pessoas vão até o Mercado Municipal de São Paulo para pegar restos de alimentos que iriam para o lixo - Danilo Verpa - 18.out.2021/Folhapress

Em busca da série completa do indicador, estabelecemos diálogo com Neri que, gentilmente, reorganizou os dados da Gallup World Poll por período de governo. Nesta nova agregação, a história torna-se ainda mais diferente da narrada na reportagem. A média da parcela de brasileiros que dizem faltar dinheiro para alimentação evoluiu da seguinte forma: no período Lula (2006-2010) eram 20,2%; no período Dilma (2011 a meio de 2016), 20%; no período Temer (meio de 2016 a 2018), 28,4%; e, no período Bolsonaro (2019 a 2021), chegou a 31,33%. Foi só tirar a Dilma que a insegurança alimentar voltou a crescer. Certamente não era isso que os brasileiros queriam, mas este é o resultado que os dados mostram.

A fome voltou ao Brasil a partir do golpe de 2016, que a um só tempo solapou a democracia e deu fim a um auspicioso período de construção de políticas de combate à fome e à pobreza e garantia de segurança alimentar. Em 2014, ao informar a saída do Brasil do Mapa da Fome, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) associou o feito histórico à estratégia que combinou aumento da oferta de alimentos e da renda dos mais pobres, geração de emprego, programas Bolsa Família e de merenda escolar à governança na área de segurança alimentar, com transparência e participação da sociedade. Todos os programas dessa estratégia foram progressivamente fragilizados ou abandonados após o golpe de 2016.

Com Michel Temer e a emenda constitucional 95, que congelou os gastos sociais, teve início o desmonte da estratégia reconhecida pela ONU. O desemprego passou para a casa dos dois dígitos desde 2016 e cresceu a parcela de trabalhadores sem direitos trabalhistas e com renda baixa e instável. A reforma trabalhista não produziu mais emprego, mas resultou em mais precariedade e insegurança. A não correção dos benefícios do Bolsa Família diminuiu sua capacidade de sustentar a renda dessa parcela de brasileiras e brasileiros.

Com Jair Bolsonaro, o desmonte foi aprofundado. Ele extinguiu o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), espaço de participação social e debate das principais políticas de segurança alimentar do país. Não elaborou o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional para 2020-23 e paralisou a instância federal coordenadora de ações em diferentes setores, deixando a área acéfala.

Reduziu ações de apoio à produção de alimentos básicos e de promoção da segurança alimentar. Diminuiu os recursos do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). E extinguiu a política de valorização do salário mínimo.

A fome está de volta porque os governos Temer e Bolsonaro desmontaram toda a estratégia que sustentava a histórica conquista civilizatória brasileira registrada pela ONU. Identificar as verdadeiras razões da tragédia que nos assola é essencial para evitar falsas ou parciais soluções. Para superar a fome novamente, o Brasil precisará voltar a crescer, é certo, mas precisará também reconstruir e aprimorar políticas. Só assim o flagelo da fome poderá vir a ser, mais uma vez, página virada em nossa história.

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