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Camila Rocha

'Fatos inadequados' e 'falas horríveis'

Em paralelo ao bolsonarismo, luta contra a opressão de gênero se renova

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Camila Rocha

Doutora em ciência política pela USP, é autora de "Menos Marx, Mais Mises: o Liberalismo e a Nova Direita no Brasil" e coautora de "The Bolsonaro Paradox: the Public Sphere and Right Wing Counterpublicity in Contemporary Brazil"

No último dia 23 de maio, o presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), deputado estadual Carlão Pignatari (PSDB), resolveu se pronunciar sobre o que qualificou como casos de sexismo na Casa. Em sua visão, a radicalização da política brasileira dos últimos três anos e meio teria trazido à tona "fatos inadequados" e "falas horríveis".

De fato, em anos recentes, o Conselho de Ética do Legislativo paulista julgou casos de quebra de decoro ligados, sobretudo, à violência de gênero. Violência sexual, misoginia e transfobia resultaram em advertências, na suspensão de um deputado por seis meses e na cassação de um parlamentar eleito —fato inédito nos últimos 20 anos.

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Fernando Cury levanta o dedo em confusão com outros deputados durante votação na Assembleia de SP - Eduardo Anizelli - 15.mar.2019/Folhapress

Curiosamente, a despeito da associação realizada por Pignatari entre tais acontecimentos e a ascensão da extrema direita ao poder, os deputados que sofreram as maiores sanções por "fatos inadequados" e "falas horríveis" não são bolsonaristas.

Fernando Cury (União Brasil) —que ficou mais conhecido por ter assediado sexualmente a deputada Isa Penna (PC do B) no plenário do que por sua atuação parlamentar— pertencia então ao Cidadania, partido satélite do PSDB. Após sua expulsão da agremiação e de um afastamento de seis meses da atividade parlamentar, Cury encontrou abrigo no recém-fundado União Brasil, onde se encontra reunida boa parte da direita tradicional brasileira.

Já o ex-deputado Arthur do Val (União Brasil), cassado por falas misóginas dirigidas a refugiadas ucranianas —"são fáceis porque são pobres"—, pertence ao Movimento Brasil Livre, startup ativista da nova direita. Apoiadores do empresário Flávio Rocha no primeiro turno de 2018, seus integrantes quase sempre procuraram se distanciar do bolsonarismo. Após um rápido flerte que se encerrou ainda no primeiro ano do governo, o movimento logo passou a integrar o antibolsonarismo à direita, com direito a manifestações de rua e pedidos de impeachment.

Os demais deputados paulistas, bolsonaristas convictos ou enrustidos, até o momento receberam apenas advertências ou foram inocentados pelo Conselho de Ética. Conselho este que, vale lembrar, é composto por uma maioria masculina.

De fato, seria possível pensar que a ascensão do bolsonarismo renovou o conservadorismo nacional, inspirando "fatos inadequados" e "falas horríveis". Afinal, até economistas ultraliberais, normalmente pouco afeitos a declarações bombásticas sobre questões morais, dizem publicamente coisas como "[a mulher] é mais eficiente fora do mercado [de trabalho]". Frase de Adolfo Sachsida, atual ministro de Minas e Energia, que sintetiza com eloquência o entrelaçamento entre liberalismo econômico e reacionarismo.

No entanto, em paralelo à ascensão do bolsonarismo, lutas contra a opressão de gênero também se renovaram e se espraiaram por meio da internet para todo o território nacional. Hoje, a maioria das mulheres brasileiras, ainda que não se identifique explicitamente com o feminismo, abraçou a ideia de empoderamento feminino e o combate aberto ao machismo nacional. Não à toa Bolsonaro tem pior desempenho justamente entre o eleitorado feminino.

De acordo com levantamento inédito, realizado pelo Instituto Update em parceria com o Idea Big Data, 77% das brasileiras desejam maior presença de mulheres na política, e mais de 60% defendem a paridade de gênero no Congresso.

Parlamentares feministas, jovens, trans, imbuídas do espírito de denunciar o machismo institucional que permeia o Poder Legislativo, passaram a encontrar eco em largas parcelas do eleitorado. Ou seja, na verdade o machismo sempre esteve presente na vida política brasileira, mas a percepção da sociedade se alterou, e queixas e denúncias passaram a reverberar em outro grau.

Como disse o próprio presidente da Alesp, hoje, de fato, se tornou "inadmissível qualquer tipo de machismo ou transfobia". Contudo, a julgar pela sanção pífia destinada a Fernando Cury pelo assédio sexual que cometeu na frente das câmeras do plenário —ato classificado como uma "brincadeira" por seu colega, o deputado Delegado Olim (PP)—, muitos ainda resistem à mudança.

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