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André Trindade

O império do pensamento binário

Queremos apagar dois anos de confinamento como se nada tivesse acontecido

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André Trindade

Psicoterapeuta e educador, é autor de “Gestos de Cuidado, Gestos de Amor” e “Mapas do Corpo” (Summus Editorial)

Gostaria de falar sobre flores, mas falarei sobre a guerra! Até quando vamos fechar os olhos para o que está acontecendo com nossas crianças e adolescentes? Quantos suicídios? Quantos "cancelamentos" (o novo bullying)? Quantas crises coletivas? Quantos flagelos esperaremos até tomarmos uma atitude digna que nos coloque novamente na posição de adultos?

Alunos e professores vêm sendo massacrados para dar conta dos conteúdos prometidos pelos gestores de escolas e exigidos pelas famílias que pagam altas mensalidades. Como escolas de tempo integral enviam deveres de casa, roubando um tempo precioso de convivência familiar? Como as famílias incentivam essa prática?

Queremos apagar esses dois anos de confinamento como se nada tivesse acontecido. Pensamos no futuro dessa geração e esquecemos de lidar com o presente. Se antes, numa classe de 30 alunos, 5 deles apresentavam dificuldades e os outros 25 fluíam, a situação se inverteu. O sofrimento é gigantesco, tanto na sala de aula quanto na sala de jantar. Tudo embaixo do tapete até que a tragédia se apresente.

Fala-se muito em mediar conflitos, mas esquecemos que nós, adultos, fazemos parte desses conflitos. Estamos todos "dodóis". É preciso descer de nossas plataformas de "sabedoria". O pensamento binário impera: vencedor ou perdedor. Esse conceito ainda é válido? Sim, está presente na maioria dos games que jogam, mas também em nossas atitudes e em nossas falas que reafirmam esse princípio.

Numa guerra, sentimentos cooperativos podem emergir em forma de colaboração, empatia e ajuda mútua. Como uma criança ou adolescente pode se concentrar na sala de aula se, no caminho entre sua casa e a escola, encontrou outros, iguais a eles, nos semáforos, com fome, pedindo ajuda? É fundamental que na sala de aula ou na mesa do jantar esses assuntos sejam discutidos. Mais importante ainda é agir: separar roupas para doação, separar brinquedos ou outros itens de valor que possam servir aos outros. Sobretudo, encarar e falar da dor de se viver em tempos de guerra.

Como psicólogo e terapeuta corporal, tenho que dizer que minha área foi a mais afetada. Imaginem dois anos de reclusão para uma criança de 2, 4, 6, 10 ou 16 anos. O impacto foi brutal! As crianças e adolescentes foram jogados em seus quartos, em posturas inadmissíveis, deitados, largados, focados em telas, na maioria das vezes fechadas para o grupo. Com isso, desapareceram, desaprenderam a conviver. Seus corpos perderam a noção de conviver entre corpos, nos recreios, nas entradas e saídas e na sala de aula.

Minha proposta é que o corpo seja reavivado a cada manhã, em casa e na escola. Em casa, proponho que a família acorde 30 minutos antes do tempo suposto como normal, que dedique 5 minutos para ler as mensagens do celular (essa praga que nos invade), e, depois, que se estabeleça um momento de convivência (sem celular), seja para falar de assuntos intrigantes, seja para cantar ou relatar sonhos e cuidar dos cachorros; enfim, mover-se. Que a vida da família cumpra seu tempo de trocas e comunicações significativas antes de partir para a vida social na escola.

A escola deveria receber seus alunos para o reaprendizado da convivência social. Ao chegar, o aluno colocaria seu material na sala de aula e partiria para uma experiência inicial em grupo, na quadra de esportes ou na área comum de convivência: uma dança (com música trazida por eles), algum jogo cooperativo e, principalmente, a discussão sobre algum tema atual proposto pelos estudantes. Depois desse tempo de reavivar o corpo e o pensamento, a mente se encontra livre para o saber, para o ensino acadêmico.

Complicado? Sim, criar filhos e educar é mesmo mais complicado do que supomos.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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