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Walter Belik e José Graziano da Silva

Há o que comemorar na Semana Mundial da Alimentação?

Desmonte da rede de proteção social agora está cobrando o seu preço

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Walter Belik e José Graziano da Silva

Diretores do Instituto Fome Zero

Para celebrar o esforço de reconstrução do nosso sistema alimentar no pós-guerra, a ONU instituiu essa agenda no ano de 1946. Estatísticas recolhidas pela antiga Liga das Nações davam conta de que, já no período anterior, praticamente dois terços da humanidade passava fome, sendo que esse contingente havia se ampliado com o conflito mundial.

Naquele momento, o remédio apresentado pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) era aumentar a oferta de alimentos para um mundo em destruição. Nos anos seguintes, um generoso pacote de investimentos resultou em avanços sucessivos na oferta de alimentos e, já no início dos anos 1950, a disponibilidade per capita havia voltado aos níveis anteriores à Segunda Guerra.

Nas décadas seguintes, a agricultura multiplicou a produção, proporcionando uma taxa de crescimento na oferta de alimentos de 2,6% anuais —ou 0,8% em termos per capita em 50 anos. Esse crescimento não impediu que fechássemos 2021 com cerca de 800 milhões de pessoas, ou 10% da população mundial, passando fome e longe da trajetória estabelecida nos compromissos de atingir uma sociedade com "fome zero" em 2030.

No Brasil, o quadro se apresentou ainda mais dramático. Após quase 15 anos de significativos avanços na luta contra a fome e na garantia de direitos previstos na Constituição de 1988, regredimos ao Mapa da Fome da ONU, do qual havíamos saído em 2014. A nossa última pesquisa mostrou que falta comida na mesa de 125 milhões de pessoas no país, sendo que 33 milhões convivem com a fome. Assistimos também à negação dessa tragédia, quando sabemos que não há como "naturalizar" uma situação na qual tanta gente depende do socorro e de doações de instituições.

Enquanto isso, as estatísticas de aumento de produção no campo reforçam o diagnóstico de que não falta comida, mas dinheiro para comprar alimentos. O desmonte da rede de proteção social que garantiu, no passado, que as famílias sem renda suficiente para comprar alimentos pudessem ter acesso a uma alimentação digna, está agora cobrando o seu preço. O consumidor de renda baixa não tem como competir diretamente pelo alimento que tem como destino o mercado internacional. Some-se a isso a falta de estoques reguladores, o que faz com que a volatilidade dos preços do mercado não possa ser amortecida, como ocorre na maioria dos países.

Falar em crise dos sistemas alimentares hoje é muito diferente dos problemas de escassez do pós-guerra. Produção, consumo, saúde e meio ambiente estão conectados, e não se combate a fome fazendo uma simples e insuficiente transferência de renda para as famílias mais vulneráveis, embora isso também seja necessário neste momento de crise aguda.

Não há muito o que comemorar nesta Semana Mundial da Alimentação. Uma pessoa que convive com fome não é uma pessoa livre. Além da privação dos seus direitos mais fundamentais, uma pessoa que convive com a fome dificilmente dispõe das condições físicas e emocionais para enfrentar os seus opressores. Por isso, a fome é incompatível com a democracia. Uma nação na qual quase 2 em cada 3 habitantes está em insegurança alimentar nos leva a uma situação semelhante à barbárie registrada no passado. Mas, nem assim, muita gente perde o sono.

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