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Renato Pereira

Um espectro ronda o Brasil

Se não reconhecida como legítima, nova direita seguirá surpreendendo a cada eleição

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Renato Pereira

Antropólogo e estrategista político

Um espectro ronda o Brasil – o espectro do bolsonarismo. Assustador para alguns, enigmático para outros, parece se definir sobretudo por aquilo que não é, como uma sombra só percebida pelo contraste com a luz, ou uma dimensão oculta da realidade só visualizada no dia do voto.

A surpresa com os resultados eleitorais do primeiro turno decorre desse jeito enviesado de olhar, talvez uma versão socialmente aceita de negação da realidade. Segundo ela, o bolsonarismo não passaria de um antipetismo radical, um fenômeno politico reativo, que só adquiriu dimensão maior graças à repercussão da Operação Lava Jato e ao impeachment de Dilma Rousseff (PT). E, claro, graças à manipulação de pautas anticientíficas e de fake news conduzida por organizações obscurantistas.

Um ponto fora da curva, um desvio grotesco no curso da história, o bolsonarismo seria, portanto, desprovido de luz própria.

Tudo se passa como se nos últimos 20 anos, entre a primeira chegada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência da República e a disputa atual, nada de substancial houvesse mudado no Brasil. Como se a familiar polarização PT versus PSDB houvesse simplesmente sido substituída pela oposição entre PT e a nova direita, liderada por Jair Bolsonaro (PL). A novidade estaria na vocação ditatorial do capitão e a sua participação numa conspiração global contra a democracia liberal.

No entanto, tentar compreender o bolsonarismo pela teoria da maquinação —como um produto da desinformação e da fraude— ou pela guerra de rejeições —como um fenômeno essencialmente reativo— atrapalha mais do que ajuda. A primeira retira do movimento qualquer legitimidade. A segunda o relega a uma mera negação. Ambas tendem a subestimá-lo. Ambas dão a entender que os seus seguidores são teleguiados pelo ódio, e não cidadãos capazes de defender pontos de vista próprios durante uma eleição.

A virada conservadora de 2018 acaba de ser aprofundada em 2022 com a eleição de vários quadros combativos do bolsonarismo. Acompanhamos o desenvolvimento de um movimento conservador popular, a algo sem precedentes no Brasil, e não a uma simples troca de guarda na Direita.

Esse movimento é afirmativo, feito por brasileiros que se sentem protagonistas: micro e pequenos empreendedores formalizados ou não, proprietários de terra, empresários, profissionais liberais, brasileiros que tem em comum o desejo de empreender e veem o Estado com crescente desconfiança. Muitos deles são cristãos e até outro dia não se sentiam reconhecidos em seu próprio país.

A agressividade do movimento, o recurso frequente às mentiras e ao preconceito por parte de seus líderes, a vocação autoritária, não podem prejudicar a lucidez daqueles que se dispõem a enfrentá-lo.

A nova direita se alimenta de contradições reais da sociedade brasileira e do mundo contemporâneo. Da distância crescente entre a elite capaz de moldar e aproveitar os novos tempos e aqueles que não se sentem parte dele. Da tensão entre os que se julgam no direito de afirmar valores universais e aqueles que os contradizem. O conservadorismo nos costumes, o apego à família tradicional, o apreço pela ordem, o patriotismo e a religiosidade exacerbada podem parecer ideias fora de época a quem cultiva sensibilidade progressista. Mas se não forem reconhecidos a tempo como uma manifestação legítima seguirão abastecendo devaneios extremistas e surpreendendo a cada eleição.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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