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Rodrigo Patto Sá Motta

A obsessão anticomunista, uma ameaça à democracia

Retórica visceral é artifício para pavimentar o caminho do autoritarismo

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Rodrigo Patto Sá Motta

Professor da UFMG, é autor de “Passados Presentes - O Golpe de 1964 e a Ditadura Militar" (ed. Zahar)

A ampla circulação da retórica anticomunista entre grupos de direita está à vista de todos. Basta registrar que, antes das eleições de outubro, diversos líderes políticos e religiosos pediram orações para "salvar o Brasil do comunismo" —e que, após a derrota nas urnas, a direita radical rogou aos militares por um golpe contra o "comunismo".

Mas poucos sabem que tais discursos e práticas fazem parte da tradição política brasileira desde princípios do século 20, de maneira mais sistemática após a Revolução Russa de 1917. No Brasil, a primeira grande onda anticomunista ocorreu entre 1935 e 1937, culminando na farsa do Plano Cohen e na instauração do Estado Novo. Outro grande surto de anticomunismo se deu entre 1961 e 1964, no contexto do governo de João Goulart, que foi derrubado pelos militares (e seus aliados civis) igualmente com base no discurso de salvar o país dos "vermelhos".

Os argumentos anticomunistas invariavelmente se inspiraram nas mesmas matrizes discursivas (religião e moralidade conservadora; patriotismo autoritário; liberalismo e primazia do mercado), dando forma a um imaginário que representa o comunismo em tons radicalmente negativos. Essa construção baseou-se em relatos sobre as revoluções comunistas, principalmente a repressão política e o autoritarismo na URSS, mas adquiriu fortes tons de manipulação e, às vezes, de simples invenção. Nas versões mais extremas, ainda em circulação, os comunistas são apresentados como agentes do próprio demônio.

Tais discursos inspiraram reação visceral ao comunismo, o que confere ao prefixo "anti" um sentido muito além da simples oposição, implicando rejeição total a um oponente considerado inimigo irreconciliável e intolerável. Historicamente, os movimentos anticomunistas representaram uma mescla entre rejeição sincera —por motivações ideológicas e sociais— e instrumentalização oportunista do medo. A manipulação intencional de sentimentos conservadores transformou o anticomunismo numa indústria, ou seja, um negócio muito rentável, cujos lucros podem vir na forma de votos, fama e dinheiro.

Uma das estratégias de manipulação é tachar de comunista todo tipo de proposta de mudança social, todo líder progressista engajado em ações para reduzir as desigualdades —em suma, todo pensamento de esquerda. E aí entra o antipetismo, que vem sendo construído há algumas décadas, mas transformou-se recentemente em força política decisiva. Os discursos antipetistas mobilizam outros elementos, mas um de seus aspectos mais marcantes são os ataques associando o PT ao comunismo, que incluem, entre outras acusações fantasiosas, o argumento da ameaça à moral e à religião.

A retomada de discursos anticomunistas é visível em outros movimentos da direita radical global. Mas, no Brasil, há características específicas que chamam a atenção, como a nostalgia da intervenção militar.

Acusa-se a esquerda de almejar ditaduras, mas se passa o contrário: os poucos governos de esquerda que tivemos foram democráticos, enquanto as nossas piores ditaduras (1937 e 1964) foram construídas em nome do combate à esquerda.

Não se trata de fazer uma defesa dos valores de esquerda. Quem não gosta da esquerda tem direito de expressar-se e votar como quiser, desde que respeite as instituições e a Constituição. O problema é que muitas pessoas estão combatendo o inimigo errado, e às vezes fantasmas, já que se chama de comunistas as figuras mais improváveis, como o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e a ONU. Por isso, é importante investir na educação da população para esclarecer conceitos básicos que são essenciais ao debate político maduro; um desafio enorme em vista do uso maciço das redes e dos algoritmos para disseminar desinformação e falsidades.

Fundamentalmente, é preciso ter claro que o anticomunismo e o antiesquerdismo visceral têm sido usados no Brasil para pavimentar o caminho do autoritarismo. Um dos antídotos contra isso é valorizar o pluralismo e o respeito à diferença, fundamentos de qualquer democracia que valha a pena.

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