Descrição de chapéu
Karina Buhr

Dezembro

Tinha esquecido como era essa cor que só existe no Natal

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Karina Buhr

Karina Buhr é cantora, compositora e artista plástica. Autora do romance "Mainá" (Ed. Todavia) e dos álbuns "Desmanche" (2019), "Selvática" (2015), "Longe de Onde" (2011) e “Eu menti pra você” (2010).

Chego na cidade de todos os meus antes, circulação sanguínea na maré alta, batendo no teto, o movimento do meu corpo obedece, recobra as texturas de quando correu do rastro, em casa de novo. A iluminação verdeja histérica, exagero. Tinha esquecido como era essa cor que só existe no Natal.

Abro porta, portal, a tinta descascada, relicário de gente viva dentro, pedaços inteiros descolando, enquanto caminho caem nas poças da chuva de ontem de manhã. Pego com pinça, com estilete fino removo o óleo seco, camadas, o rastro dos cupins, com seringa preencho cada casa que o bicho comeu e deixou oco, sem massa, restauro minha memória, ainda mais comida.

Inauguração da árvore de Natal e show de luzes do parque Ibirapuera no último dia 3 - Jardiel Carvalho/Folhapress

Não lembro desse prédio, era uma casa aqui, de muro baixo, já caía naquele tempo. Passo o produto todo do pote, misturo o transparente com a tinta com cola, emulsão especialista, tento puxar ela de volta, sugar minha lembrança que dorme ali embaixo. Uma agulha comprida, pra remédio de gente, vacina, o movimento reverso, encho os sulcos, raspo onde sobra em cima, as rugas aparentes de novo, bonitas.

Com pinça delicada, de mexer na cara, no pelo da sobrancelha, cada peça que separei pego, quebra-cabeças de histórias. Sucção da seringa amarelada, plástico quebradiço, injeto uma gosma, derreto vernizes de duzentos anos, dissolvo só a parte que quero, egoísmo.

Vou fazer tintas novas, cruas, inéditas, diluir até um tom que não existe, recriar ela todinha do jeito que era, parada no tempo, só com o que tinha quando fui embora. Eu nunca fui embora.

Camadas sobrepostas virando uma, mas uns pássaros devem aparecer agora, eles me tiram dali debaixo, personagens alados secos, empalhados no ar, aliados de outro tempo, me jogam num caldeirão de tinner, de um tipo que não faz mal, basta fechar os olhos, ele não me estraga, e minhas capas derretem, formam uma sopa antiga, boio nela, deságuo no mar sujo do porto, sou do tamanho de um lixo.

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