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Wagner Miquéias F. Damasceno

Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre e o mito da democracia racial

Ainda vigora uma espécie de pacto de silêncio sobre o conteúdo de suas obras

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Wagner Miquéias F. Damasceno

Doutor em Sociologia pela Unicamp, é professor na Unirio e autor de "Racismo, Escravidão e Capitalismo no Brasil: Uma Abordagem Marxista"

Há um discurso ainda corrente na academia de que o racismo na obra do pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) seria uma espécie de mal-entendido sociológico, embora o autor de "Casa-Grande & Senzala" tenha dado os fundamentos teóricos para aquilo que convencionou-se chamar de "democracia racial".

De fato, diferentemente dos ideólogos do século 19 que defendiam ideologias abertamente racistas, Freyre argumentou que a sociedade brasileira fundara-se a partir da contribuição do branco, do negro e do indígena. Porém, sempre deixou claro que coube ao branco português o protagonismo e a autoria dessa sociedade racialmente democrática.

Para o sociólogo, a escravidão aqui foi diferente porque o português não tinha "preconceitos inflexíveis" e foi "o colonizador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores. O menos cruel nas relações com os escravos".

Essa ideia medular redundaria no argumento da ausência de ódio racial no Brasil, fundamental para a tese da democracia racial. Um argumento que não era originalmente de Freyre mas de seu conterrâneo, Joaquim Nabuco (1849-1910). Nabuco afirmava que a escravidão "não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor —falando coletivamente— nem criou entre as duas raças o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos".

No livro "Racismo, Escravidão e Capitalismo no Brasil: Uma Abordagem Marxista" mostro que Freyre foi decisivo para a "mitificação" de Nabuco —a quem chamava elogiosamente de "legítimo senhor-moço de casa-grande" e "redentor dos cativos no Brasil"— propondo ao Poder Executivo, em 1948, homenagens ao centenário de Nabuco e a criação do então Instituto Joaquim Nabuco, em Recife.

Nabuco entendera que a escravidão havia se tornado um obstáculo para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e temia que seu prolongamento pudesse precipitar uma revolução negra, semelhante a que ocorrera no Haiti, em 1791. Por isso via no abolicionismo um movimento de "previdência política".

Coerente com seu racismo, Nabuco também foi contrário à imigração de chineses para o país. Em "O Abolicionista", dizia, por exemplo, que "o principal efeito da escravidão sobre a nossa população foi, assim, africanizá-la, saturá-la de sangue preto, como o principal efeito de qualquer empresa de imigração da China seria mongolizá-la, saturá-la de sangue amarelo".

A ideologia da democracia racial oculta a desigualdade racial, jogando para os porões da vida social o racismo que graceja à luz do dia nas ruas e lares do Brasil. De quebra, torna-se um grande obstáculo à tomada de consciência sobre a gravidade do racismo na sociedade brasileira.

E quando dizemos que Freyre foi o principal formulador da ideologia da democracia racial é porque chavões do racismo brasileiro como "não sou racista, pois trato minhas empregadas como se fossem da família" encontram correspondência em afirmações como estas do autor: "Quando eu nasci já não havia escravidão no Brasil, mas eu ainda encontrei, na minha família, escravas que tinham sido e continuam a ser da família. De modo que, muito na intimidade, eu aprendi que houve, no Brasil, um relacionamento todo especial entre senhor e escravo. Eu me lembro da escrava particular de minha mãe. Chamava-se —vejam o paradoxo— Felicidade. Mas eu asseguro que nunca, em toda a minha longa vida, encontrei pessoa mais feliz da vida".

A ideologia da democracia racial pode ser auferida também em afirmações suas como esta, de "O Brasil em face das Áfricas Negras e Mestiças": "Aos métodos patriarcais de integração de gentes primitivas em sistemas de convivência sociologicamente cristã deve-se atribuir, em grande parte, o fato de terem os portugueses, juntando ao autoritarismo necessário ao sistema patriarcal de família a transbordante democracia da miscigenação, lançado as bases de uma nação do porte, da importância e da extensão da brasileira —talvez a maior, a mais autêntica, a mais completa das democracias raciais que o mundo já viu".

A verdade é que as críticas a Freyre e Nabuco são ainda pequenas quando comparadas ao alcance de suas ideias. De fato, ainda vigora uma espécie de pacto de silêncio sobre o conteúdo de suas obras, bem como a de tantos outros intelectuais que deram seu quinhão para a manutenção do racismo no Brasil.

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