Descrição de chapéu
Afonso Borges e Lívia Sant’Anna Vaz

Deus não está à venda

Pecaminosamente fértil, racismo religioso revela disputa de poder e território

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Afonso Borges

Escritor, jornalista e gestor cultural, é realizador do FliAraxá, FlItabira, FliParacatu e, há 37 anos, do projeto “Sempre Um Papo”; vice-presidente da Organização Social de Cultura “SP Leituras”

Lívia Sant’Anna Vaz

Doutora em ciências jurídico-políticas (Universidade de Lisboa) e mestre em direito público (UFBA), é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e atua na Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa; autora de “Cotas Raciais” (ed. Jandaíra)

"Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só atirou hoje"
(ditado Iorubá)

Este sábado (21) é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, instituído pela lei federal nº 11.635/2007, em alusão à morte da ialorixá baiana Mãe Gilda, fundadora do terreiro de candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador.

Apesar dos avanços legislativos, o racismo religioso no Brasil segue corroendo as entranhas da nossa abalada democracia. As religiões de matriz africana nunca gozaram de igual liberdade de crença. Ao longo da nossa história, foram alvo de toda sorte de violências, muitas delas praticadas pelo próprio Estado.

Criminalizadas como feitiçaria e curandeirismo, obrigadas ao cadastramento em Delegacias de Jogos e Costumes, perseguidas e demonizadas por pretensos cristãos.

Escultura fica em base de concreto amarela e traz Mãe Stella sentada em um trono. Atrás dela, há uma estáua do orixá Oxóssi
Escultura em homenagem à ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, em Salvador, foi vandalizada - Fundação Gregório de Mattos/Divulgação

Hoje, a ira contra as religiões afro-brasileiras e suas raízes negras é reforçada por um setor político-religioso que não se envergonha de proclamar-se terrivelmente cristão, envolvendo até mesmo a conversão de organizações criminosas que, "em nome de Deus", aterrorizam comunidades religiosas e depredam terreiros Brasil afora.

Nesse campo pecaminosamente fértil, o discurso de ódio e o racismo religioso proliferam como num "milagre da multiplicação", ditando uma suposta "guerra santa" que, muito mais do que religiosa, revela disputa de poder e de território. Nessa velha/nova "caça às bruxas", queimam-se também nossas raízes ancestrais, nossa brasilidade, cultura, num ambiente no qual nem a arte consegue sobreviver.

As obras do saudoso Tatti Moreno —esculturas de orixás em cobre que encantam cidades como Salvador, Aracaju, Brasília e São Paulo— têm sido constantemente vandalizadas e muitas vezes, não por acaso, queimadas como manifestações de uma inquisição contemporânea.

Em Brasília, há anos, a praça dos Orixás, localizada às margens do lago Paranoá, está entregue à destruição e ao ostracismo. Num dos mais recentes ataques, a escultura de Ogum foi derrubada e queimada. E o pedestal continua vazio, na praça. No Dique do Tororó, em Salvador —berço do candomblé no Brasil—, a beleza das peças também não inibe as cotidianas ofensas. No último 4 de dezembro, dia dedicado a Iansã (Oyá), o monumento à Mãe Stella de Oxóssi, na capital baiana, amanheceu incendiado.

Diante desse estado de terror, o silêncio dos bons —como nos recorda Martin Luther King Jr.— é consternador! E se soma ao grito dos maus, dos intolerantes, dos que destilam ódio, ao mesmo tempo em que dizem defender a pátria, a família e, acima de tudo, Deus —numa pregação falaciosa de cidadãos de bem, de cujas boas intenções até mesmo Ele duvida.

Deus não está à venda! Não é propriedade privada nem monopólio cristão ou de qualquer outro segmento religioso! A (re)construção da democracia passa pelo compromisso de valorização da nossa diversidade religiosa, étnica e cultural. Nesse tão delicado quanto potente momento de transformação, a restauração e salvaguarda das peças de Tatti Moreno é uma ação necessária para "estilhaçar a máscara do silêncio", como diz Conceição Evaristo. É um grito de libertação!

Que Ogum —orixá guerreiro, detentor dos saberes da forja e que nos ensina a não invocar a guerra em vão— nos inspire a alcançar paz e respeito às diferenças. Que Oyá —senhora dos ventos e das tempestades— nos envolva em ares vivos de esperança e verdadeiro amor ao próximo. E que, enfim, a arte ancestral de Exu nos torne capazes de atirar hoje a pedra que matará o pássaro sombrio do racismo religioso.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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