No rescaldo do 8 de janeiro, o anúncio da possibilidade de criação de um memorial pela democracia desperta a atenção por ser uma iniciativa de reparação coletiva pouco utilizada pelo Estado brasileiro, especialmente quando os responsáveis pelas violações ainda não foram punidos. O governo federal assume o protagonismo de lembrar para que a barbárie não se repita, sinalizando que a democracia é o único caminho para lidar com as diferenças e que os espaços de memória e culturais podem ser locais de superação da intolerância.
Em geral, as iniciativas de memorialização são respostas às demandas da sociedade civil, de grupos de vítimas, como forma de reparação e com a finalidade de contribuir na cicatrização das feridas. O trabalho coletivo de memória em torno de fatos do tempo presente encontra a dificuldade de as feridas ainda estarem sangrando.
Um dos legados mais atrozes do 8/1 foi a destruição. A ideia do memorial parte tanto da cultura material destruída, deteriorada ou furtada pela turba, como do trauma sofrido naquele dia pela população brasileira, que teve a sua democracia vilmente ferida.
A memória dessas tragédias não está apenas cravada nos objetos e locais diretamente afetados pelos atos horrendos. Ela extrapola e pode vir a se implantar na memória coletiva da nação, consolidando um processo cidadão de construção de uma memória crítica.
A criação e o funcionamento de um local para reparar a coletividade e ajudar a recosturar o tecido da nação é uma medida que tem potencialidade de aprofundar a intrínseca relação entre democracia e cultura: seu desenho e instalação demandam um diálogo entre os atores envolvidos, com investimento de dinheiro, tempo, recursos humanos; o processo de reflexão sobre que tipo de lugar e de acervo já, é em si, uma forma de fortalecimento da cidadania.
A escolha dos objetos e das imagens que serão expostos e resguardados para as próximas gerações como registro do 8/1 é um outro passo e depende de diálogo e de técnica. Tanto a sociedade quanto o Estado estão legitimados a indicar os objetos e imagens que devem ser preservados, incluindo aí os destroços, fragmentos, testemunhos e itens que servem ao mesmo tempo de memória do mal cometido e de admoestação no sentido de que não devemos permitir que nossa democracia seja novamente esgarçada a ponto de permitir tais atos golpistas.
Brasília é uma cidade com a peculiaridade de ter seu conjunto arquitetônico tombado. Juscelino Kubitschek a criou inspirado no faraó Akhenaton, que também fundara uma nova capital para o Egito. O faraó, no entanto, fez destruir monumentos que homenageassem outros deuses que não seu deus-sol Atom. Agora essa mesma fúria iconoclasta se voltou contra Brasília. Também no nazismo, o hitlerismo promoveu uma "higienização da cultura", como a famosa exposição "Arte Degenerada" deixou claro.
A transformação da violência em memorial permite que a história seja recontada sob outra perspectiva, plural e aberta, com a consolidação de uma consciência cívica que não aceite a hipótese de que as graves violações ocorridas no passado voltem a se repetir.
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