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Marina Pinhão Coelho Araújo

No direito, o humano não é feminino

Juristas estruturam respostas a partir do que é vivenciado pelo masculino

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Marina Pinhão Coelho Araújo

Advogada criminalista e conselheira do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo)

Ao construir seu conceito de liberdade, Hannah Arendt propôs que só seria realmente livre quem pudesse, em espaços públicos garantidos, desenvolver toda sua personalidade e capacidade como ser humano. O sistema jurídico ainda exclui do espaço público a perspectiva feminina.

Esperança Garcia foi a primeira advogada brasileira. Em 1770, escravizada em uma fazenda no Piauí, no Brasil, ela advogou pelo direito a sua vida e de seus filhos. Esperança desafiou as limitações de sua vida de escravidão e violência. Myrthes Gomes de Campos bacharelou-se no Rio de Janeiro em 1898. Inscreveu-se no Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil apenas em 1906.

Os paradigmas do direito foram construídos sob a perspectiva masculina. Juristas estruturam respostas jurídicas a partir do que é vivenciado pelo masculino. É muito recente —e ainda incipiente— a participação feminina na construção das fontes do direito. E não digo apenas em relação à baixa participação de mulheres —muito limitada nos espaços de poder em que se decide sobre o direito e pelo direito. Falo principalmente da perspectiva feminina nessa construção: seus direitos, suas particularidades, o espectro da violência sofrida.

No sistema penal, a perspectiva feminina é desconsiderada desde a legislação até a execução das penas. No cenário legislativo, a mulher é inserida sob o manto de fragilidade, hipossuficiência e dependência das condutas masculinas. Sem a possibilidade de decidir sobre sua própria vida e seu próprio corpo, as mulheres perpetuam-se em um lugar de objeto: meio de desejo e instrumento de reprodução. O direito penal aprofunda essa perspectiva machista da sociedade.

O desequilíbrio é ainda mais grave no caso das mulheres negras —força social e econômica de um sem número de famílias—, que não são respeitadas pela legislação penal em sua identidade, diversidade e dimensão plural. São discriminadas e marginalizadas, sem uma perspectiva interseccional. E, quando há alguma suspeita de conduta a incidir no direito penal, são tratadas com o máximo rigor. No direito, o humano ainda é o branco e o masculino.

desenho em preto e branco de mulher negra, com cabelo black power, segura uma pena em uma das mãos e veste uma blusa branca com um lenço caindo aos ombros.
Desenho de Esperança Garcia, negra escravizada que foi reconhecida como advogada em 1770 - Ilustração Valentina Fraiz

Em casos de mulheres presas por tráfico internacional de drogas, muitas vezes cooptadas sexualmente a agir para redes internacionais de distribuição de entorpecentes, a valoração da conduta perpassa a perspectiva masculina, agravando-se, em muitos casos, a reprovabilidade da conduta e as penas de prisão.

O fenômeno social jurídico deve espelhar a constituição da sociedade, que é plural e, em grande parte, feminina. A efetividade do discurso racional democrático encontra-se precisamente no amálgama dessas perspectivas. Se não há esse pluralismo, as mulheres não são realmente livres. São outros fazendo as regras sobre suas vidas, seus corpos, seus filhos, suas histórias. É preciso requalificar nosso direito, para que sejamos efetivamente uma sociedade democrática e humana.

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