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Clara Marinho

Por uma burocracia que não está no retrato

Diversidade deve ser valor um intencional do Estado

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Clara Marinho

Servidora pública federal, é coidealizadora da iniciativa “Elas no Orçamento”

O núcleo duro do serviço público ainda não retrata a sociedade brasileira. E se isso não for uma preocupação central na formação das equipes, a fotografia dos dirigentes será sempre parecida, apesar da passagem do tempo.

Não é recrutando profissionais dos mesmos círculos sociais ou usando argumentos de neutralidade nos processos seletivos e de indicação que será possível produzir novas soluções para os grandes problemas nacionais —como a pobreza, a desigualdade, a degradação ambiental, a baixa produtividade econômica etc. Ou ainda é possível acreditar que uma burocracia homogênea não possui vieses decisórios? Ou que é possível governar para mulheres sem sua participação? Diga-se o mesmo para a população negra, os povos indígenas, a população LGBTQIA+, entre outros sujeitos de direitos.

Rita Serrano (esq.), nova presidente da Caixa Econômica Federal, e Tarciana Medeiros, primeira mulher a presidir o Banco do Brasil - Elaine Menke/Câmara do Deputados e Divulgação/BB

Partindo da ideia de que a diversidade de gênero e raça deve ser um valor intencional na gestão do Estado, na medida em que pode tornar as políticas públicas mais próximas das necessidades e dos valores da população, é que nasceu a iniciativa "Elas no Orçamento". Nos últimos meses de 2022, a ação coletou indicações de mulheres que se destacam na área de finanças públicas, formando uma lista ofertada à sociedade com 260 profissionais de elevada formação acadêmica, carreiras consistentes e entregas feitas ao país.

A contribuição do projeto "Elas no Orçamento" para a democratização de cargos de prestígio ainda está por ser mensurada. Um olhar atento sobre a lista pública mostra que muitas mulheres ali presentes alcançaram novas oportunidades de desenvolvimento de carreira e, portanto, de ampliarem suas contribuições. Mas isso tem se traduzido na adoção de uma perspectiva de promoção da igualdade de gênero na burocracia de forma mais ampla?

O avanço é parcial. Conforme levantamento feito pelas próprias mulheres da iniciativa em janeiro deste ano (com base no Diário Oficial da União, sem dados sobre raça/cor), há uma tendência em nomear mais homens do que mulheres nos cargos da alta gestão, ao mesmo tempo em que ocorre o inverso para cargos executivos. Por outro lado, cinco ministérios possuem predominância feminina nas nomeações, e a maioria dos cargos está vaga.

Como há disposição de ministras e ministros para a composição de equipes diversas, avalia-se que há espaço para progredir. Contudo, deve-se problematizar que, apesar da maior escolaridade, as mulheres têm menos chances de desenvolvimento profissional e, portanto, de inserção nos processos decisórios. Mulheres negras e indígenas, em particular, ainda menos. Donde resulta a pergunta: é possível deixar que a democratização da alta burocracia dependa sobretudo das autoridades políticas?

A publicação "Propostas para fortalecer a capacidade administrativa dos governos 2023-2026", da República.org —organização dedicada à melhoria do setor público a partir da gestão de pessoas—, sugere que a promoção da equidade da burocracia fortalece o Estado e a democracia. Por isso, deve se amparar em processos vigorosos de institucionalização.

Para além da melhoria do acolhimento à maternidade e do combate ao assédio moral e sexual, o texto elaborado por alguns dos maiores especialistas em gestão pública do país recomenda adotar cotas para mulheres —assim como para negros e indígenas— nos cargos de direção, chefia e assessoramento do Poder Executivo federal. Em outras palavras, sugere criar um terremoto político e simbólico que permita à alta burocracia se parecer com o país que a ela serve, posto seu papel de colocar os problemas na mesa, definir prioridades, alocar recursos e rever os rumos das políticas públicas.

Um país tão diverso e multirracial como o Brasil não pode esconder as demandas legítimas por inclusão e participação cívica para debaixo do tapete e deixar que as principais decisões sobre o seu futuro continuem a ser tomadas, majoritariamente, por pessoas de terno e gravata.

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