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Y. David Weitman

A tragédia da Vila Sônia e a lição da Páscoa judaica

Devemos cercar nossos filhos com o calor humano que somente o amor emana

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Y. David Weitman

Rabino-chefe da Congregação Beit Yaacov, é autor e palestrante

É completamente chocante que um adolescente de 13 anos possa assassinar uma professora inocente a sangue frio. A tragédia que ocorreu em Nashville (EUA) também foi um episódio extremamente bárbaro e cruel. Chegamos ao absurdo em que docentes e alunos sentem medo de ir para a escola. Por ser um representante de um povo sensível à dor alheia, venho expressar as mais sinceras e profundas condolências a todos os pais e familiares.

Já houve épocas em que "levar bomba" na escola poderia ocasionar, no máximo, uma severa repreensão dos pais e a perda de um ano de estudos. Atualmente, a bomba é literal. Além dos massacres e das matanças, já houve alunos que levaram bombas caseiras para a escola, também em colégios de São Paulo.

Mãe e filha, ambas ex-estudantes da escola estadual Thomazia Montoro, na zona oeste de São Paulo, prestam homenagem; ataque de aluno deixou uma professora morta e outras cinco pessoas feridas - Bruno Santos - 28.mar.23/Folhapress

Quando, em 1999, ocorreu o massacre da Columbine High School, em Denver (EUA), quando dois jovens executaram seus colegas, e, tempos depois, na Virginia Tech, e outras tragédias parecidas na Alemanha, comentou-se que esses países haviam passado por várias guerras que deixaram sequelas e traumas. Algum tempo depois, chegou a vez da Finlândia, um lugar tranquilo. E, por último, acontece o mesmo no Brasil, um país pacífico e tolerante.

Não é o lugar que forma as pessoas, mas é a educação que prepara os jovens para o futuro. De fato, as crianças nascem sem qualquer pecado. Ao crescer, precisam se transformar nos alicerces de uma sociedade ética e saudável. Já dizia o Salmista: "Das bocas dos bebês e das crianças de peito, Tu estabeleceste força" (Salmos 83). Todavia, na Torá (a Bíblia judaica) é usado o mesmo termo —"Querubim"— para indicar crianças anjinhos (Êxodo 25:18) ou demônios, terroristas (Gênese 3:24). Dependerá da educação e da sociedade se as nossas crianças se tornarão anjinhos ou demônios.

Estamos na Páscoa ("Pessach"), quando a lei judaica nos obriga a se abster de qualquer pão convencional (fermentado) e consumir apenas a "matsá" (pão ázimo), lembrando a libertação do povo judeu da escravidão do Egito. Ambos são elaborados com os mesmos ingredientes —água e farinha—, mas o pão cuja massa cresceu simboliza a vaidade e o orgulho. A "matsá", esse pão achatado, simboliza a humildade e a modéstia.

Disse o Todo-Poderoso: "E cuidareis do pão ázimo" (Êxodo 12:17). Somos ordenados a cuidar para que a "matsá" não fermente. Na prática, existem duas formas para você inibir a fermentação natural: 1 - antes de começar a inflar, pegamos a massa e rapidamente a colocamos no forno; 2 - basta continuarmos a sovar a massa indefinidamente, trabalhando-a sem parar, não permitindo que ela fique "ociosa" (mesmo por horas), e ela não fermentará, como bem sabem as donas de casa.

Nossas crianças e nossos jovens são a massa mais preciosa que temos. Assim como, por natureza, qualquer massa fermenta e incha, de forma similar a criança, apesar de pura, é propensa ao egoísmo e pode tender para a maldade. É nossa obrigação cuidar dessas massas jovens para elas não fermentarem nem azedarem, pois uma criança que se sente rejeitada pode causar danos irreversíveis à sociedade, como pudemos ver. O judaísmo, como falamos, oferece duas alternativas para inibir a fermentação do caráter e a tendência para a arrogância e a maldade: o calor do forno e o trabalho com a massa.

Analogamente, devemos cercar nossos filhos com o calor humano que somente o amor emana. Eles precisam sentir-se queridos e membros orgulhosos e ativos de algo maior: família, comunidade e sociedade. Eles querem sentir que a vida é preciosa e tem algum objetivo. Querem amar e ser amados, conhecer o calor e a intensidade dos relacionamentos familiares.

Policiais chegam à Covenant School, em Nashville, após ataque a tiros - Departamento da Polícia Metropolitana de Nashville via Reuters - via REUTERS

Trabalhar a massa significa fazer com que os nossos jovens se interessem pelas coisas. Que estejam ocupados com assuntos bons e positivos. A ociosidade é extremamente perigosa para eles. Temos que dar a eles muitas responsabilidades e preceitos para cumprir a fim de que não tenham tempo sequer para pensar em errar. Certa vez, um mestre chassídico disse: "Eu não quero que meus discípulos evitem o pecado meramente por terem controlado o desejo. Quero, sim, que o evitem por pura falta de tempo".

Somente quando cuidamos dos "pães ázimos" —zelando, alertas, pelos nossos filhos e jovens contra os males externos—, a integridade do caráter é preservada. Isso deve se traduzir em lares calorosos e unidos, onde a criança percebe que faz parte de algo importante e sabe que é bem-vinda. Lares, porém, que não abdicam da disciplina e que ensinam o jovem a usar o seu tempo de forma correta.

Nas tristes tragédias dos massacres nas escolas, os assassinos são frequentemente descritos pelos colegas como pessoas tímidas e caladas. Porém, numa análise mais profunda, percebe-se que eles cresceram sem o calor familiar necessário, passaram por vários braços e sofreram decepções e rejeições na vida. Segundo a mídia, muitos deles passavam horas e horas em frente a uma tela se deleitando com cenas de violência e assassinatos. Uma vez que a tecnologia é desprovida de moral e não produz pessoas melhores, essa ociosidade e falta de "calor do forno" fizeram a massa fermentar.

Devemos manter os nossos jovens ocupados e ensinar-lhes bons valores e boas ações, incutir neles o desprendimento e instruí-los com muito amor a se preocuparem com o próximo. Precisamos incentivá-los a se intelectualizarem por meio do estudo, bem como a demonstrar respeito pela Autoridade Máxima através da oração, no sentido vertical, e do altruísmo, no sentido horizontal.

Há décadas, o Rebe de Lubavitch, líder mundial judaico, já dizia: "Ao contrário do senso comum, que considera as crianças virtuais seres humanos, incapazes de atingir o potencial completo antes da maturidade, a tradição judaica as vê como dignas e merecedoras do nosso tempo, já que personificam a pureza de propósitos, sinceridade, fé e amor à vida".

O conceito universal de "inocência infantil" quase foi sepultado na Vila Sônia e em Nashville. O judaísmo, baluarte dos valores éticos, insiste que tal pureza pode ainda retornar, através de um esforço educacional, com mensagens de fé e esperança, "trabalhando a massa" e dedicando-se inteiramente à formação dos nossos jovens. Afinal de contas, um pouco de luz é capaz de afastar a mais profunda escuridão.

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