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Svetlana Ruseishvili

Chanceler russo não deveria ser recebido pelo Brasil

Correto seria país condenar qualquer pretensão imperialista e defender autonomia das nações

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Svetlana Ruseishvili

Socióloga transdiaspórica russo-ucraniano-georgiana e ativista antiguerra

Serguei Lavrov é o porta-voz da política externa russa desde 2004 e, assim como o presidente russo, Vladimir Putin, está sob sanções individuais por parte de União Europeia, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e outros países. Lavrov é um dos ministros mais duradouros e importantes no governo Putin: comandava a pasta quando a Rússia anexou a Crimeia em 2014; quando bombardeou a população civil com as armas proibidas na Síria, em 2015; quando iniciou a guerra criminosa contra a Ucrânia, em 2022.

A sua visita ao Brasil é desnecessária e será taticamente usada pelo regime de Putin para fortalecer o seu argumento antiocidental, que tem se tornado uma armadilha ideológica para os países do "Sul Global".

O chanceler russo, Sergey Lavrov, cumprimenta o seu colega brasileiro, Mauro Vieira, em Brasília - Ueslei Marcelino/Reuters

No dia 13 de abril, a Folha publicou uma carta de Lavrov ("Cooperação da Rússia com América Latina baseia-se em abordagem desideologizada e não ameaça ninguém") endereçada aos latino-americanos às vésperas de sua visita à região. Além de mentiras costumeiras, o texto retoma o raciocínio adotado no discurso de Putin em 30 de setembro de 2022, quando o presidente russo lançou mão da retórica anticolonial para culpar o Ocidente de ter explorado, escravizado e expropriado povos não ocidentais.

Ele também usou os princípios do relativismo cultural para defender os "valores tradicionais" russos (fundamentalismo religioso, família heteronormativa, autoritarismo político) contra a "degradação moral" do Ocidente representada pelos direitos humanos, feminismo, movimento LGBTQIA+, liberdade de expressão e outros direitos sociais. Tudo aquilo para, enfim, legitimar o seu direito soberano de invadir, interferir e restringir os direitos da população nos países que se encontram em sua "zona de influência". Putin nunca quis combater o imperialismo, mas sim ter direito de exercer o seu próprio imperialismo de forma legitimada pela "nova" ordem internacional.

Assim mesmo, lemos na carta de Lavrov que "hoje, a questão em jogo é o caráter da ordem mundial: seria ela justa, democrática e policêntrica de verdade, como exige a Carta da ONU, que consagra a igualdade soberana de todos os Estados?". Pois bem, que "igualdade soberana de todos os Estados" tem em mente Lavrov quando ele se refere à Carta da ONU? Não é a Rússia que interfere desde 2014 na política interna de um país soberano vizinho até iniciar a invasão em larga escala? O que exatamente significa a ordem "democrática" para o chanceler de um país, que encarcera a oposição, estigmatiza os ativistas de movimentos sociais como "agentes estrangeiros", censura a imprensa livre, descriminaliza a violência doméstica, persegue as minorias religiosas, étnicas e sexuais?

Perguntem para os ativistas tártaros da Crimeia, o povo muçulmano originário da península, o que de fato significa a ordem "democrática" para o Kremlin. Eles têm sistematicamente denunciado as perseguições, acusações de terrorismo, deslocamentos forçados de suas casas e suas aldeias e encarceramento em massa de ativistas perpetrados pelo regime russo após a ocupação da península.

Quanto à ordem "policêntrica" de verdade, à qual se refere Lavrov, está claro que ela diz respeito não à ordem sem imperialismos, mas sim a uma divisão do mundo interimperialista na qual a Rússia possa reinar em sua área de controle de forma ilimitada. Quando Lavrov pergunta se "seria permitido que EUA e a coligação por eles liderada prossigam sua agenda em detrimento de outros, drenando recursos alheios a seu favor?", ele só esquece de complementar: "sem que a mesma conduta seja permitida também para outros países?". Que a sociedade democrática brasileira não se engane, pois essa é a verdadeira reivindicação de Putin!

Assim, a abertura que o governo Lula dá ao Kremlin deveria preocupar os movimentos sociais e a parcela da população para qual a democracia representa mais que mera representatividade eleitoral. Não é por coincidência que Lavrov irá visitar na mesma viagem, além da Cuba, parceira histórica da Rússia, a Venezuela de Maduro que tem gerado a crise migratória sem precedentes no continente, com mais de 5 milhões de deslocados no mundo]; e a Nicarágua, onde o regime de Daniel Ortega tem perseguido e assassinado ativistas dos movimentos sociais e da oposição.

Os malabarismos retóricos usados pelo Kremlin para disfarçar suas atitudes autoritárias e agressivas não deveriam enganar a sociedade brasileira que preza pela democracia. Assim como a extrema direita mundial instrumentalizou o discurso feminista para legitimar as políticas antimigratórias e islamofóbicas na Europa], o putinismo se vale da retórica e dos sentimentos antiestadunidenses na América Latina para legitimar a expansão territorial de seu regime conservador e autoritário.

Ávido por retomar o seu papel reconciliador na arena internacional, o Brasil deveria primeiramente condenar qualquer pretensão imperialista e defender a segurança e o direito das nações pequenas à autodeterminação, em vez de apertar a mão ensanguentada do representante de um país agressor neoimperialista criticado pela comunidade internacional pelos crimes de guerra.

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