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Matthew Harris

Agente comunitário como fator de saúde pública

NHS se inspira no modelo do SUS para ampliar atenção primária à população britânica

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Matthew Harris

Professor de saúde pública (Imperial College London)

Reportagem da BBC News Brasil reproduzida nesta Folha ("O que o SUS está ensinando ao serviço de saúde britânico", 10/5) e texto da coluna Toda Mídia ("Com britânicos 'mais pobres', NHS agora aprende com o SUS", 9/5) noticiaram que nossos esforços para traduzir o papel do agente comunitário de saúde (ACS) do SUS para o NHS do Reino Unido se deve ao fato de que este último está agora tão pobre que precisa adotar modelos de países pobres —como o Brasil. Essa realidade, porém, levanta muitas questões.

A primeira, e mais importante, é que ela é imprecisa. E posso dizer isso com alguma autoridade porque, nos últimos 19 anos, tenho promovido e defendido a adoção pelo Reino Unido da função de ACS como ocorre no Brasil —desde que fui médico de família no sistema brasileiro de 1999 a 2003. Procuramos (por muitos anos) aprender com o SUS e, especificamente, com o sistema de agentes comunitários de saúde em escala. Simplesmente porque é uma solução de força de trabalho com bom custo-benefício, baseada em evidências para sistemas de atenção primária que buscam atender às necessidades e demandas da população —basicamente em todos os países do mundo.

Logotipo do sistema de saúde público britânico em hospital de Londres - Neil Hall/Reuters - REUTERS

E como sabemos que essa é uma solução efetiva e baseada em evidências? Bem, a equipe do professor Davide Rasella, da Universidade Federal da Bahia, publicou um estudo no British Medical Journal em 2014 que mostrou, de forma muito convincente, que os moradores de municípios que dispunham de uma alta cobertura (acima de 80%) de ACSs tinham 34% menos probabilidade de sofrer mortes por doenças cardiovasculares (DCV) em comparação com as cidades que não contavam com esse tipo de atendimento.

Se os ACSs fossem uma pílula, todos nós estaríamos tomando. Esses resultados são melhores do que tomar estatinas! E não se trata apenas da mortalidade por DCV. James Macinko, professor da Universidade da Califórnia e um dos maiores especialistas em políticas de saúde do Brasil, publicou vários estudos que mostram o mesmo em relação a hospitalizações, atendimentos em departamentos de emergência, mortalidade infantil e assim por diante. Onde quer que haja uma boa cobertura de ACSs no Brasil, os resultados de saúde da população melhoram.

A segunda questão essencial diz respeito à caracterização de que tanto o Reino Unido quanto o Brasil são "pobres". Sim, o Reino Unido, assim como a maioria dos outros países, tem enfrentado alguns choques econômicos e fiscais desafiadores ultimamente. O brexit, a Covid-19, a Guerra na Ucrânia e o aumento da inflação estão contribuindo para um delicado ato de equilíbrio com o erário público.

No entanto, a necessidade de equilibrar os gastos para obter o máximo dos fundos públicos está sempre presente em todos os países. Com o Reino Unido não é diferente. Estamos muito longe de sermos "pobres", mas isso não significa que não possamos ser motivados a adotar modelos de atendimento que vão além e fazem mais e para mais pessoas.

A ideia de que o Reino Unido está se inspirando no Brasil porque o Brasil é um país pobre também revela uma mentalidade de inferioridade generalizada que, francamente, é um gol contra espetacular. As pessoas gostam de caracterizar e generalizar os países como ricos ou pobres, mas essas afirmações simplistas desmentem o fato de que todas as nações têm bolsões de riqueza e de pobreza. De qualquer forma, algumas das inovações mais importantes, de alto valor e acessíveis, surgem da necessidade de fazer mais com menos. A pobreza é um excelente impulsionador da inovação!

Portanto, nós, no Reino Unido, estamos buscando implementar uma função de ACS como a que vocês têm no Brasil porque faz sentido para a saúde pública. Simples e direto. Os ACSs visitam as casas uma vez por mês e conhecem as famílias muito bem. Isso significa que eles podem identificar quando alguma situação não está indo bem, ajudar na adesão aos medicamentos, saber quando alguém está ficando doente ou em risco de contrair uma enfermidade e ajudar a promover estilos de vida saudáveis.

Com 275 mil agentes comunitários de saúde no Brasil atualmente, todos fazendo isso, com todas as famílias, em todo o país, significa que vocês podem identificar melhorias extremamente importantes na saúde da população. É algo extraordinário. E antes que você, leitor, pense que os ACSs só seriam úteis para pessoas pobres, lembre-se que problemas de saúde, de qualquer tipo, podem surgir a qualquer momento e para qualquer pessoa.

Então por que não ter um ACS confiável, atencioso e solidário que bata à sua porta e lhe dê a oportunidade de obter ajuda caso precise? Talvez seja hora de o Brasil reconhecer sua fantástica conquista —como nós já fizemos.

Tradução Airton Stein

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