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Marcelo Feijó de Mello, Mario Thadeu Leme de Barros Filho e Dartiu Xavier da Silveira

É preciso racionalizar o debate de descriminalização das drogas

Solução exige envolver toda a sociedade, com menos ideologia e mais ciência

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Marcelo Feijó de Mello

Psiquiatra, é professor pleno da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein (FICSAE) e livre-docente na Escola Paulista de Medicina (EPM-Unifesp)

Mario Thadeu Leme de Barros Filho

Advogado, é professor da FICSAE e da EPM-Unifesp

Dartiu Xavier da Silveira

Psiquiatra, é professor da EPM-Unifesp

O uso de substâncias que alteram a mente se confunde com a história: humanos consomem drogas desde a Idade da Pedra. Na segunda metade do século 20, a prática foi criminalizada. A ONU reviu diretrizes proibicionistas, considerando as adições como problema de saúde, não de polícia. Seguindo um avanço civilizatório, vários países vêm descriminalizando o seu uso.

No Brasil, o debate é polarizado, muitas vezes pautado no preconceito e no senso comum, atrasando um avanço verdadeiramente dialógico —não há escuta, não há argumentação. De partida, é necessário abandonar o preconceito velado de que quem defende a descriminalização das drogas é favorável ao uso e indiferente aos danos que elas causam à saúde. A ciência mostra correlações entre consumo de substâncias psicoativas, lícitas e ilícitas e aumento do risco de doenças.

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Operação da polícia paulista contra o tráfico na cracolândia, no centro de São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress) - Folhapress

Estudo da Fiocruz mostrou que 3,2% dos brasileiros usaram substâncias ilícitas no período de um ano, sendo a maconha a mais consumida. O consumo se tornou patológico para 20% dos usuários de maconha, e 13% estavam dependentes. A maior parte deles tem riscos, mas não está doente. Porém, muitos são vítimas de um Estado que os tratam como criminosos. É uma situação paradoxal: quem mais necessita do amparo do Estado acaba sendo marginalizado.

Revisão sistemática da literatura (2018) sobre o impacto de descriminalização ou legalização não encontrou muitos trabalhos, mas os dados sugerem que não houve nenhum efeito na idade de início do uso nem nos preços dos entorpecentes.

Relatório da comissão John Hopkins-Lancet sobre as consequências das políticas de proibição refere a formação de uma economia paralela, dominada pelo narcotráfico e pautada na violência para proteger seus mercados, recebendo resposta igualmente violenta das forças policiais e militares. Países como México e Brasil são assolados por altos índices de homicídios e criminalidade relacionados a essa guerra.

Outra consequência na saúde é a exposição e disseminação da Aids e da hepatite viral, assim como o aumento do risco de tuberculose associado a essas doenças. A política repressiva está diretamente associada à transmissão de enfermidades através da facilitação do uso de injeções contaminadas, impondo barreiras a serviços de fornecimento de seringas e agulhas e à prescrição de drogas opioides não injetáveis para tratar a dependência.

Comprimidos de oxicodona, um analgésico opioide - Eric Baradat/AFP - AFP

Com a criminalização, há o encarceramento excessivo por pequenos delitos não violentos relacionados às drogas. Por vezes a prisão ocorre somente pelo porte —sobretudo de indivíduos mais vulnerabilizados. Com a lei antidrogas brasileira (2006), houve um aumento de 700% desse tipo de prisão. Somos o país com a terceira maior população carcerária do mundo, sendo 50% dos detentos relacionados à posse de drogas (62% entre as mulheres). A maioria será condenada (95%) e cumprirá, em média, penas de cinco anos. Num sistema prisional que não ressocializa, esses brasileiros terão muitas dificuldades de reintegração.

Experiências concretas de vários países que descriminalizaram delitos menores relacionados a entorpecentes, como Portugal e República Tcheca, levaram à redução do custo econômico, ao menor encarceramento, a benefícios de saúde pública; e sem um aumento significativo no consumo. A descriminalização associada a programas de redução de danos possibilitou o controle de uma epidemia concomitante ao uso de seringas compartilhadas.

O desafio de uma política pública eficaz está na busca de um balanço entre as ideias e uma diminuição do consumo. Campanhas educativas devem pensar numa tolerância contrariada, sem fervor ideológico, mas com pragmatismo afiado e persistente. Fundamental neste debate é manter a visão da saúde, reconhecendo os riscos do uso continuado.

Contudo, é uma questão bem mais ampla, que transcende a saúde, com implicações sociais, jurídicas, antropológicas e econômicas. A solução só virá a partir de um debate de toda a sociedade, com menos ideologias, sem estigmatização, menos paixão, mais razão, mais ciência, mais empatia e menos intolerância.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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