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Vilmar Debona

O pessimismo necessário para narrar o horror

Só aos otimismos caberiam a aceitação da desgraça deliberada

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Vilmar Debona

Doutor em filosofia (USP), é professor de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autor de “A Outra Face do Pessimismo” (ed. Loyola)

Em artigo publicado nesta Folha ("É preciso narrar o horror", 23/4), o professor José Henrique Bortoluci pontuou de forma brilhante uma necessidade para nossos tempos: a urgência de narrativas que elaborem o horror experimentado recentemente pela sociedade brasileira, plasmado em pandemônio singular, feito de pandemia, negacionismo e estupidez.

O sofrimento inaudito, para ser criticamente registrado e combatido, requer, de fato, um amplo tecido de discursos. Sem descrições do mal, a violência inusitada que produziu mais de 700 mil cadáveres, milhares evitáveis, se naturaliza e se perpetua como trauma. Mas, para descrever o mal, conceitos propícios.

Vista área de sepultamento no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo; país ultrapassou a marca dos 700 mil mortos por Covid - Eduardo Knapp/Folhapress - Folhapress

Faz três anos que estamos testando palavras e apelando a neologismos, mas agora que a Organização Mundial da Saúde declarou o "fim da emergência de saúde da pandemia", com qual filosofia, com quais conceitos narrar o rastro de morte e pavor, cravado como marca da humanidade e das civilizações do século 21, para que esse pandemônio não caia no esquecimento como um evento justificado do passado?

As peças do tecido estão aí, não precisamos de termos inéditos. Ao invés disso, dá para aproveitar os existentes, despoluindo aqueles aparentemente inservíveis, mas que não serviriam apenas devido às camadas de pechas que acumularam.

É o caso de pessimismo. Existe há séculos como palavra e como visão filosófica de mundo, mas foi tão vulgarizada que virou refém de expectativas ruins e da metade vazia do "copo". Pessimismo vem de "pessimus", "o pior". Opõe-se a otimismo, de "optimum", "o melhor". Pessimismo e otimismo filosóficos designam visões críticas de mundo.

No Ocidente, o otimismo deve uma de suas primeiras sistematizações a Leibniz, que justifica este como "o melhor dos mundos possíveis" porque criação de um deus igualmente bondoso e ótimo. Porém, se não nega que neste mesmo mundo existem mal, injustiça e sofrimento, também não evita justificar estes em nome da positividade do bem. Revela-se, assim, para defensores do pessimismo, como improcedente, dessintonizado e insensível.

Considerado o pai do pessimismo filosófico moderno, Schopenhauer sustentou que o otimismo é pernicioso porque falseia. Sua narrativa representaria um escárnio ante à realidade de privações, explorações e massacres, por onde se conclui que, para sermos pessimistas, basta sermos sinceros. A tese schopenhaueriana do "pior dos mundos possíveis" (pois se fosse um pouco pior já não subsistiria) instigou uma frutífera "controvérsia do pessimismo" na Alemanha da segunda metade do séc. 19, redescoberta hoje, inclusive no Brasil, com elementos nossos. Sinais dos tempos?

As nuançadas visões pessimistas de mundo não são feitas necessariamente de quietismo e imobilismo. Se há pessimismos quietistas, há também ativos, que denunciam e narram o mal como nenhuma outra filosofia, pois só eles se lançam à penosa meta de pautar os lados mais tenebrosos da humanidade, em geral invisíveis para otimismos.

Não são simples "malismos", dispostos à mera lamúria sobre o mundo. E suspeito que uma das nossas dificuldades para narrar o horror se deve justamente ao cultivo de formas de otimismo como estratégias veladas de autoelogio, com as quais podemos esconder, para não parecermos horríveis, as piores facetas do mal.

A "sinceridade social" ensejada pelo pessimismo depende primariamente de diagnósticos verdadeiros. No país das supostas cordialidade e alegria —seria nosso disfarce pernicioso?—, um passado nefasto de genocídio, escravidão e exploração. Acrescentam-se, agora, milhares de vidas ceifadas por negacionismo de governo recheado de imbecilidade e alegria maligna de quem trabalhou a favor do vírus, centenas de crianças indígenas esqueléticas morrendo à míngua pelo garimpo ilegal, destruições múltiplas.

Um tal inferno tropical inflaciona os versos do cancioneiro: "a tristeza é senhora", "o samba [se é pai do prazer, é, antes], filho da dor". O passado mortífero segue inaceitável, irreparável, injustificável; e só aos otimismos caberiam a aceitação e a justificação em relação à desgraça deliberada. É assim, aliás, que está implícita para as políticas de memória a capacidade de ver o "pessimus", sem o que não narrariam a verdade.

Já teríamos um arcabouço conceitual para narrar nosso horror. Basta sacudirmos o pessimismo de seus barateamentos, com o que vislumbraríamos suas múltiplas e ricas definições filosóficas, sociais e políticas.

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