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Rose Marie Santini

Sobre a manipulação da busca do Google

Plataforma diz seguir muitos critérios, mas transparência não é um deles

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Rose Marie Santini

Doutora em ciência da informação (UFRJ), é pesquisadora e professora da UFRJ; fundadora e diretora do NetLab (Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais)

Um dos casos emblemáticos de manipulação da história da tecnologia que todos os brasileiros conhecem é sobre quem inventou o avião. Em 1906, Santos Dumont criou seu próprio avião e conseguiu fazê-lo voar em Paris, caso documentado com fotos e testemunhas. Porém, em 1908, os irmãos Wright apareceram na França alegando terem inventado primeiro. Ao serem questionados sobre as evidências de que isso teria ocorrido, eles alegaram que a invenção foi feita "em segredo, sem testemunhas" e nunca apresentaram qualquer comprovação de que foram os precursores da aviação. Sem provas, como acreditar na versão dos irmãos Wright?

Essa história nos faz pensar no comportamento do Google na semana em que seria votado o projeto de lei 2.630 no Congresso Nacional, conhecido como PL das Fake News. O principal objetivo do projeto é proteger usuários, consumidores e anunciantes brasileiros. Se aprovado, as empresas de tecnologia terão que respeitar as leis brasileiras, ter transparência sobre publicidade e algoritmos, além de responsabilidade sobre seus serviços. As big techs são contra o PL porque a regulamentação aumentará seus custos. Quais foram, contudo, as estratégias do Google para tentar interferir na votação?

Google destaca link contra PL das Fake News
Google destaca link contra o PL das Fake News - Reprodução

O Netlab-UFRJ (Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro) publicou um relatório de pesquisa na véspera da votação, divulgado nesta Folha ("Google lança ofensiva contra PL das Fake News, mostram emails e relatório", 1º/5), explicitando que o Google se aproveitou de sua posição de liderança no mercado de buscas para tentar influenciar negativamente a percepção dos usuários sobre o projeto. Mostramos que o Google anunciou e veiculou anúncios contra o PL 2.630 de forma opaca, burlando suas próprias regras e os termos de uso de outras plataformas. Também reunimos evidências de que o Google apresentou resultados de busca enviesados para usuários que pesquisavam por termos relacionados ao projeto, mostrando perguntas sobre "PL da Censura", nome usado pela oposição para atacar a proposta, e não por "PL 2.630" ou pelo apelido oficial "PL das Fake News".

Ironicamente, as respostas dadas pelo Google em suas recomendações levavam os usuários a sites de fake news. Além disso, todos os brasileiros testemunharam a plataforma colocando uma mensagem contra o projeto de lei na sua tela inicial às vésperas da votação.

Nosso estudo usa vários métodos de coleta de dados, entre eles a "auditoria baseada em agentes", que tem sido adotado por diversos pesquisadores —a exemplo do estudo publicado na HSK Misinformation Review de Harvard, que identificou vieses do buscador do Google. A big tech nega a manipulação das buscas, dos anúncios e dos termos de uso; porém, como os irmãos Wright, sem apresentar evidências em sua defesa. Por conta desse episódio, o Ministério Público notificou o Google cobrando explicações; o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) abriu um investigação sobre as atitudes da empresa; o Ministério da Justiça emitiu medida cautelar; e o ministro Alexandre de Morais, do Supremo Tribunal Federal, pediu a abertura de inquérito.

O Google não é réu primário. A empresa enfrenta uma série de ações judiciais no mundo por parcialidade nos resultados de busca e manipulação da publicidade. Em 2017, a União Europeia deu início a um processo que terminou em multa de 2,42 bilhões de euros por a plataforma dar vantagem ilegal ao seu próprio serviço nos resultados de busca. Em 2019, a Comissão Europeia multou novamente o Google em 1,49 bilhão de euros por violação de regras antitruste e abuso de posição dominante no mercado da publicidade online. Em 2020, o Departamento de Justiça dos EUA abriu uma ação judicial contra o Google acusando-o de práticas anticoncorrenciais nas buscas e na publicidade. Em 2023, autoridades federais americanas abriram um novo processo antitruste alegando que a empresa monopoliza ilegalmente o mercado de anúncios online e asfixia concorrentes.

Mesmo após condenações e multas altíssimas, em todos os casos o Google continua negando as alegações sem apresentar evidências. Fica claro por que não quer o PL 2.630 —exigiria transparência dos algoritmos e da publicidade. A questão não é ideológica. É interesse financeiro na sua forma mais agressiva.

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